(Parte integrante do livro Mantenha a calma, não há rinocerontes neste livro.)
Há aqueles que acordam toda manhã e tem muito orgulho de terem a grande habilidade de não defecarem e urinarem em seus próprios pés e há aqueles que acordam toda manhã e tem muita vergonha de ainda não terem unido a Grécia, conquistado a Anatólia e expandindo o seu império até o rio Ganges. João e Maria, dois irmãos gêmeos, por uma série de inexplicáveis acidentes faziam parte do segundo grupo, diferente dos seus pais e da maioria das pessoas que se encontravam ao seu redor. Uma série de acidentes inexplicáveis, pois era difícil explicar a inteligência daqueles dois jovens habitantes de um barraco no morro do Zô, no centro do Rio de Janeiro.
Tinham agora doze anos, e desde pequenos nunca se deixaram enganar
pelas drogas oferecidas a casta escrava a que pertenciam, sejam aquelas
horríveis imagens e histórias produzidas por um estranho instrumento chamado
televisão, com pessoas escandalosas e rosas, seja a pratica de um bizarro
ritual de chutar uma bola, ou copular com uma bola - não dava para diferenciar
-, ou os estranhos ruídos de outro sinistro instrumento chamado rádio, com
grunhidos de psicopatas. Em vez disso, se dedicavam a conhecer o mundo,
conhecer como funcionava, como estourar as pipocas, encontrando força um no
outro para se defender da aversão que causavam por serem espécimes tão fora do
comum, marinheiros. Estavam lá sempre um para o outro, seja quando seus pais
afrontados por sua independência, os batiam e os xingavam; seja quando eram
judiados pelas outras crianças, por se recusarem a ser cães do que os outros
viam na TV ou no rádio; seja nos momentos de felicidade, quando dividiam seus
estudos – estudos de puro espontâneo interesse, não obrigados por aquela
instituição criminosa chamada escola, a qual eram forçados a frequentar e a
qual tentava lhes instigar um horror ao conhecimento -.
Seria
a genética ou a memética a origem de suas inteligências? Talvez fora a pipoca,
mas isso é outra história. Só pode se dizer que esse acidente produziu uma
união, que dificilmente poderia ser encontrada em qualquer outro casal de
irmãos gêmeos, seja no morro do Zô, seja em toda a cidade do Rio de Janeiro,
seja dentro de um McDonalds, talvez só nos corredores da Sala de Justiça,
acompanhados do macaco Gleek. Começaram, então, a conspirar para uma vida
melhor, para uma grande fuga a um lugar melhor, assim que o pudessem
identificar, e para isso, para ter mais tempo a se dedicar aos seus estudos,
começaram a faltar as aulas da escola. E tudo ia muito bem. Isso pelo menos até
o dia que foram descobertos por seus pais. Fatídico dia, que na idiocracia a
qual eram habitantes, foram surrados e separados. Outro clichê cotidiano de uma
sociedade em que a razão fora substituída pela adoração cega de um salvador,
Barney, o dinossauro rosa, que morreu numa banheira francesa por nossos
fetiches com pés e mãos.
O
problema que se apresentava a João e Maria é que apesar de estarem juntos,
estavam também sozinhos. Apesar de repugnarem seus pais e todos ao seu redor,
naquele mundo não havia possibilidade de fuga para duas crianças de doze anos.
Fugir era descer até o oitavo círculo do inferno, São Gonçalo, pois tudo estava
ocupado, tudo era feito para destruir o que eram, e assim só havia uma saída,
se manter onde estavam, pois ali, apesar de tudo, estavam protegidos por certas
ordens sociais que seus pais não tinham a capacidade de desobedecer. Pelo
menos, era isso que pensavam. Mais pipocas, por favor!
Após um período de raiva e revolta de seus
pais, em que esses batiam a cabeça na parede várias vezes, João e Maria foram
mais uma vez permitidos a se ver, ela foi tirada do armário do quarto, e ele,
do armário da cozinha. E, assim, como a ponte Rio-Niterói é uma ponte que liga
o município do Rio de Janeiro com o município de Niterói, e a profissão de pai
e mãe é a mais antiga das profissões a atrair os sujeitos mais incompetentes,
seu pai ainda com um olhar de repugnância lhes anunciou que fariam um viagem.
Desceram então das terras altas do Zô, para as terras baixas do centro do Rio. O
povo das terras baixas se diferenciava pouco dos de Zô, eram só diferentes
caricaturas, tinham mais dinheiro para diferenciar suas fantasias, diferente do
povo das terras altas que se contentavam com a cópia chinesa, personalizada por
mãos da província de Hunan. João e Maria estranharam o comportamento de seu
pai, estava apreensivo como se ele soubesse que estava prestes a fazer algo de
errado, e assim, por segurança, decidiram marcar seu caminho com estatuetas do
Silvio Santos. Foram colocando várias pelo caminho que faziam do centro até a
central do Brasil, e depois dentro do trem. Ele parava em muitos lugares, e a
cada estação João e Maria colocavam uma estatueta do Silvio Santos para saber
que ali haviam passado, isso até finalmente chegarem num lugar mítico e
distante chamado Japeri. Lá saíram com seu pai e este numa padaria comprou-lhes
um pão, depois pediu licença e foi no banheiro comprar pipoca. De lá nunca
voltou. Porém, seus pais não contavam com o fato dos dois terem marcado o
caminho com estatuetas do Silvio Santos. Assim João e Maria voltaram,
recolhendo suas estatuetas do Silvio Santos, e quando foram barrados na roleta
do trem, simplesmente as usaram para acertar a cabeça do segurança. No fim do
dia, para muito desagrado dos seus pais, estavam de volta em seu barraco. Isso
não contentou a eles, e logo no dia seguinte, mais uma vez, seu pai levou-os
para um passeio. Dessa vez, não tendo tempo de recolher novas estatuetas do
Silvio Santos, os dois pegaram o pão que seu pai lhes comprara no dia anterior
e que haviam guardado no bucho de um gato. Desceram o Zô, mas dessa vez não
foram de trem, sim de metrô. Claro, sempre marcando seu caminho com pedaços de
pão tirados do bucho de um gato. Não sabendo que cada pedaço de pão que
deixavam no chão, era rapidamente devorado pelos habitantes do Rio. No metrô,
chegaram enfim a General Osório, e lá o seu pai lhes ofereceu um chiclete, já
que lá o pãozinho era 100 vezes mais caro que o pão normal de Japeri. E mais
uma vez ele foi no banheiro comprar pipoca, lhes abandonando. Porém, quando
João e Maria foram recolher os pedaços de pão tirados do bucho de um gato que
deixaram para identificar o seu caminho, viram que eles não estavam mais, todos
agora no bucho dos selvagens cariocas. Agora, tinham sido definitivamente
abandonados e Barney, o dinossauro rosa, não iria salvá-los.
Sem
saber o que fazer, os dois começaram a andar por Ipanema. Andaram e andaram e
com fome ficaram, foi quando pararam na frente de um grande doceira. Ficaram lá
olhando os doces com fome, nunca tinham visto coisas assim antes, quando a dona
do lugar apareceu para lhes enxotar. Refutaram, pois estavam na calçada, mas a
dona da loja ameaçou chamar a polícia. Tiveram medo, pois se soubessem que
tinham sido abandonados, uma instituição do governo seria pior que seus pais.
Governo, outra profissão que desde o início dos tempos atraia os mais
incompetentes. Porém, uma cliente da loja, vendo a situação, saiu também e se
meteu na discussão. Acusou a dona da loja de desumana e os convidou para entrar
e comer doces, era a socialite Narcisa Pandeirodegay. João e Maria aceitaram
por estarem com fome, mas a mulher em si lhes assustava. Não importava o que
falasse, ela não parava de sorrir e seus olhos, seus olhos arregalados ai, não
pareciam ter nada lá dentro. Na loja, comeram muitos tipos de doce, bombons,
mufins, tortas, balas. Porém, mesmo satisfeitos, não eram deixados parar de
comer, Narcisa sempre os fazia comer mais e mais. No fim de uma hora, João e
Maria já podiam notar que tinham cometido um erro, mas era tarde demais, algo
estava acontecendo em seus corpos, sua mente começara a se enevoar, seus membros
tornavam-se pesados, apesar que de vez em quando sentirem do nada uma agitação
repentina, que logo sumia e os deixava com fome mais uma vez, só que dessa vez
também todo exaustos. Nesse estado, finalmente Narcisa parou de obrigá-los a
comer doces, e os fez a acompanharem de volta a rua. Lá, quem sabe da onde, e
quem sabe por quê, havia uma equipe da TV para entrevistá-los. Narcisa anunciou
que tinha decidido amadrinhar as duas crianças de rua e iria cuidar delas em
sua cobertura. Seu sorriso assustador só aumentava na presença das câmeras. Os
jornalistas ficavam lhes perguntando como os dois se sentiam com aquele tamanho
ato de bondade, mas João e Maria só conseguiam balbuciar algumas poucas
palavras de tão drogados de açúcar que estavam. As câmeras os acompanharam até
a cobertura do Copacabana Palace e lá Narcisa mostrou o luxuoso quarto onde
ficariam, e descreveu como seriam bem cuidados. João e Maria ainda não
conseguiam prestar atenção no que estava acontecendo. Por fim, as câmeras foram
embora, e os dois caíram dormindo num sofá.
Ao
acordar, Maria se viu sozinha em um pequeno quarto sem janela. A porta estava
trancada, sem saber o que fazer, começou a gritar por João. Foi quando Narcisa
abriu a porta e lhe deu bombons de avelã para comer. Maria recusou, só
cometeria o erro de comer aquelas coisas uma vez. Narcisa não se contentou e
lhe apontou uma arma. Deu um tiro e uma pipoca acertou Maria na cabeça, sem
saída ela comeu o bombom. Já drogada, Narcisa obrigou Maria a varrer a casa.
Fazendo isso, desorientada, ela encontrou João, também no mesmo estado, preso
numa jaula na cozinha. Isso se seguiu por vários dias, e se tornava cada vez
mais óbvio que enquanto Narcisa só drogava Maria, no caso de João, ela o queria
engordar. Ela falava que gostava de homens encorpados. Maria temia o pior, que
ela fosse comer João, e assim, mesmo já com seu corpo viciado no açúcar, lutou
contra seu estado e começou a vomitar num vaso toda vez que Narcisa lhe forçava
a comer bombons. Ela precisava achar o momento certo para liberar seu irmão. E
sabia que não podia contar com a ajuda de João, que estava sempre muito fora do
ar com os doces para realmente pensar em conjunto com ela. Foi então que um
dia, Maria tentou empurrar Narcisa para a panela, porém esta era muito pequena
para a receber, já que Narcisa tinha o tamanho de um humano normal e a panela
de uma panela normal. Narcisa revoltada mais uma vez trancou Maria no pequeno
quarto de empregadas, e isso enquanto gritava com aquele seu sorriso assustador
nos lábios que comeria seu irmão. Então, Narcisa tirou João da jaula e o levou
até o seu quarto. Lá começou a fazer poledancing, porém, mesmo drogado, João conseguiu
juntar forças e tacou um balde de água sobre Narcisa, o que fora feito com o
objetivo que ela derretesse. Ela não derreteu, só alargou mais seus olhos e
sorriso e continuou o seu poledancing. Porém, ao dar mais um giro no poste de
dança, Narcisa se deparou com sua face no espelho, ela não derretera, mas sua
maquiagem havia manchado. Aterrorizada com essa visão, ela se jogou da janela.
João conseguiu libertar Maria do quarto de empregada e os dois fugiram antes
que a próxima manada de jornalistas de tv chegassem para os entrevistar sobre o
ocorrido. Os dois, então, saíram correndo pelo calçadão da praia de Copacabana.
Espera-se que tenham vivido felizes para sempre, caso não tenham morrido de
fome.
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