Amostra do livro Capivara Exterminadora.
Cena 2: Comissão Constituinte 487º Dia
Projeção de repórter.
Repórter:
As manifestações continuam em todas
as regiões de El Dourado, enquanto chega ao seu 487º dia a Assembleia Nacional
Constituinte, sem qualquer previsão de quando acabarão os trabalhos. O atual
presidente da assembleia, o senador Honório Salvação, do Partido do Movimento
Socialista Fascista Democrático, se pronunciou no início da semana, declarando:
Salvação:
É necessário tempo para se chegar a perfeição.
E é a perfeição que nós, que o povo, espera! Um assembleia assim não é algo que
acabe em alguns poucos meses. Quem já viu uma assembleia séria acabar em poucos
meses? É necessário pelo menos alguns anos para que ela tenha o seu grau de
seriedade compreendido, não só pelos seus próprios participantes, mas também
por aqueles que a acompanham. Então não adianta ficar pedindo para agilizar os
trabalhos, porque não é assim que se faz, e se é para fazer, é para fazer
direito, e o que queremos é fazer direito, então mesmo que o país e o planeta
acabem primeiro e retornem para as trevas, só chegaremos a uma nova
constituição, quando esta for perfeita e tratar por completo de todos os
problemas da nação.
Repórter:
Quando questionado da constante falta de coro
parlamentar no Congresso para avançar com agilidade os trabalhos, o senador não
quis se pronunciar. Porém respondeu as críticas quanto aos altos gastos do bufê
das sessões, chegando as extravagâncias de 300 mil reais por dia.
Salvação:
Um estado perfeito é um estado em que todos os
seus habitantes não só tem acesso a alimentação, mas também a alimentação de
qualidade. Então, como se espera que nós, cidadãos como qualquer outros, como
necessidades como a de qualquer outros, cheguemos a uma constituição para esse
estado perfeito, se nós já não temos no nosso dia a dia de trabalhos duros a
alimentação esperada desse estado perfeito.
Repórter:
O atual escândalo do bufê como vem sendo
chamado, só vem a somar aos descontentamentos que a assembleia constituinte tem
causado na população. Lembrando que as últimas manifestações tomaram força
quando o congresso aprovou adição do auxílio de bolsa indecisão as remunerações
dos congressistas, tendo como justificativa o estresse causado pela dificuldade
de se chegar a um acordo na assembleia. Mesmo com as constantes manifestações o
povo segue ainda com paciência e esperança que a assembleia poderá entregar uma
constituição para um país melhor!
Fecha a projeção do repórter. Sobe a luz sobre
o cenário. Sarnento faz um discurso no palanque. Molusco, Cacilda, Ludmila e
Juju prestam atenção. Oscar dorme. Um outro deputado olha o relógio inquieto.
Sarnento:
Parlamentares, gostaria de aproveitar esses
últimos minutos da sessão de hoje para já começarmos a debater os primeiros
pontos a serem tratados na sessão de amanhã. Estamos todos aqui passando por um
momento extremo, que precisa de uma decisão firme e certa de todos os partidos
representados aqui. Nosso país passa por muitas dificuldades, as pessoas estão
inquietas nas ruas, e precisamos estar numa posição que nos permita melhor
atender as suas preocupações. Sei que passamos por muitas discordâncias, mas
acredito que nisso podemos encontrar uma união e assim chegar a uma posição
mais confortável para os trabalhos e para atender a vontade do nosso povo. Só
quando nós aqui que representados as milhares de faces quem compõe este país,
puderem se encontrar unidos, num assento mais confortável de decisão, é que
poderemos responder a altura e com honra as necessidades dos eleitores que nos
colocaram aqui. Sim, sei que muitos que restaram aqui neste fim de sessão podem
não estar nas melhores posições para dissuadir os outros membros dos seus
partidos, estes que já saíram da casa antes do horário. Mas também acredito que
pequenas sementes possam dar grandes árvores, e por isso peço que todos aqui se
pronunciem com seus partidários sobre essa questão afim de amanhã chegar
rapidamente a um melhor acordo. Trouxe aqui uma série de documentos que podem
os ajudar nessa persuasão. (Pega uma pilha de catálogos e os coloca em cima da
mesa.) São os catálogos de três empresas norueguesas especializadas na
confecção de poltronas. Tomei a liberdade de já circundar com um marcador
vermelho, as que acredito que melhor atenderão as nossas necessidades.
Molusco:
Peço ao presidente da sessão a palavra.
Salvação:
Concedo ao deputado Molusco, do Partido
Nacional dos Trabalhadores sem Emprego, a palavra!
Molusco:
Deputado Sarnento, venho aqui questionar essa
sua suposta representividade do povo de El Dourado, quando o senhor nos faz
perder tempo num debate sobre quais poltronas norueguesas escolher para poder
continuar a constituinte. Essa atitude demonstra mais uma vez a falta de
compromisso e a busca de só atender os interesses próprios de seu partido e de
seus coligados. Nosso país não precisa dessas poltronas de ...
Sarnento:
Mas isso é um desaforo!
Sai o deputado que olhava o relógio. Atravessa
o portal de saída.
Salvação:
Deputado Sarnento, controle-se ou será
oficialmente repreendido! Pode dar continuidade, deputado Molusco.
Molusco:
Nosso país não precisa dessas poltronas chiques
do exterior, dessas poltronas de uma elite velha e datada, quando podemos
encontrar poltronas de ótima qualidade e mais baratas dentro de nosso próprio
país. Senhor presidente, quero que seja anotada a minha manifestação perante os
debates amanhã sobre a compra de novas poltronas para casa, que estas tem de
ser de produção nacional, e que qualquer proposta da importação seja visto como
insulto a produção nacional!
Sarnento:
Peço a palavra!
Salvação:
Concedida.
Sarnento:
Isso é um estapafúrdio sem limites! Recuso-me a
sentar em poltronas de qualidade duvidosa. Eu e meu partido não aceitaremos
essa afronta aos nossos direitos. O país precisa do melhor, do melhor testado e
aprovado internacionalmente. Nós não aceitaremos essa imposição do partido do
deputado Molusco, obviamente destinada a uma compra de votos dos carpinteiros
da fábrica de que quer assinar contrato.
Cacilda levanta a mão.
Salvação:
Concedida a palavra a deputada Cacilda.
Cacilda:
Por Jesus, não vamos nos dividir aqui por essas
poltronas endemoniadas, assim não chegaremos a nenhum lugar. Todos concordamos
aqui que esse é um assunto de extrema urgência. Não podemos perder dias na
decisão. Posto isso, devo concordar com o deputado Molusco. Não sei onde fica
essa tal de Noriega, mas não podemos entrar em outro escândalo com gastos no
exterior. Também me manifesto que as poltronas tem de ser de produção nacional,
produzida por nossos cidadãos tementes a deus.
Molusco levanta a mão.
Som de trovão, todos os atores ficam
paralisados, a luz do palco desce, sobe uma luz de holofote grande a frente do
palco, passa a sombra de uma capivara gigante. Sobe a luz de novo no palco,
tudo continua.
Salvação:
Concedida a palavra ao deputado Molusco.
Molusco:
Muito de acordo, deputada Cacilda. O cidadão de
El dourado não se julga por padrões internacionais de qualidade, mas sim por aquilo
que vê no seu dia a dia. E o que vê no seu dia a dia é a necessidade de
emprego, é a necessidade de valorizar o seu esforço, a sua mão de obra, a sua
honra. Por isso, temos que fortalecer a produção nacional. Já posso
providenciar para amanhã os documentos para licitação de novas poltronas pela
empresa Móveis de Angu. Acredito ser essa empresa a de maior respeitabilidade
na área de produção carpinteira, tendo já sido responsável por muitas das
encomendas da gestão pública do meu estado. Sem sombra de dúvida, uma empresa
que respeita a identidade nacional e a honra de nossos cidadãos.
Sarnento:
Mas que absurdo! (Grita)
Acorda Oscar com o grito.
Salvação:
Deputado Sarnento, o senhor já foi
avisado!
Sarnento:
Desculpe, senador Salvação, é que tanta
estapafúrdia que é difícil se controlar. Peço a palavra.
Salvação:
Concedida a palavra.
Enquanto Sarnento fala, Oscar olha
desorientado a sala, depois seu relógio, pega sua maleta e se desloca para
sair. Chegando a 50 centímetros do portal de saída para e fica lá, ainda mais
confuso sem saber o que fazer. Depois de um tempo, senta na cadeira mais
próxima.
Sarnento:
Hum... Móveis de Angu, Móveis de
Angu, Móveis de Angu, por acaso não é o senhor seu primo, um dos principais
acionistas nessa sua tal dita respeitável empresa.
Salvação desiste de intermediar,
cruza os braços e apoia os pés na mesa.
Molusco:
Uma coisa não tem nada a ver com a
outra. Não pode culpar o meu primo, ou a mim, se a excelência corre na família.
Deputado Sarnento, o que o senhor está insinuando é uma afronta digna de
processo!
Sarnento:
É mesmo, deputado Molusco? É assim
que o senhor quer obter a respeitabilidade do povo? Pois pelo que sei pelos
noticiários do seu estado, esse seu digníssimo primo, só chegou a sua
digníssima excelência, pelos contratos com a gestão pública após o senhor ter
assumido seu primeiro mandato. Pelo que sei também, a sua Móveis de Angu, é
motivo de chacota pessoal dentro do seu próprio estado, pela qualidade
deteriorada dos materiais que entrega. Bancos de praça com cupins, mesas
escolares em que os alunos conseguem partir com um soco, e pior de tudo, poltronas,
poltronas que destroem a coluna de seus digníssimos vereadores. Agora, me diga
Deputado Molusco, quem aqui é digno de processo? Quem aqui é digno de uma
improbidade administrativa?
Ludmila:
Deputado Sarnento, sinceramente, o
senhor quer mesmo entrar aqui em quem tem mais méritos por improbidade
administrativa?
Sarnento:
(Transtornado) Desculpe-me, Deputada Ludmila.
É... (tosse) Senhores, o que quero concluir aqui é que essa não é a hora, nem o
lugar apropriado para estarmos pensando em novas formas de encher nossas
lancheiras de escola. Quem sabe quanto tempo nós não estaremos aqui discutindo
essa maldita nova constituição. Essas poltronas são um assunto de extrema
importância. Pois são nossas bundas que estarão sentando nelas. Então, por
favor, senhores, vamos tratar esse assunto com a importância e seriedade que
deve ser dada.
Juju que até agora, só ficou observando tudo,
se levanta e começa a bater palmas. Ninguém a acompanha, todos só olham para
ela com um frio silêncio. Acanhada, ela para e volta-se a sentar.
Salvação olha seu relógio, sorri e bate o seu
martelo.
Salvação:
Findada a sessão do dia! Hora de voltar a vida,
cambada!
Salvação é o primeiro, pula de sua cadeira,
solta a gola da gravata, vai quase que dançando até o portal de saída. Porém 50
centímetros de distância, também para, fica confuso, olha para os lados e
retorna para o outro lado do palco, se apoiando na mesa do palanque. Sarnento
volta a sua cadeira, arruma sua mala, e sai ombro a ombro com Molusco, ambos
desafiantes na sua postura, mas sem se encarar, Ludmila vai logo atrás deles.
Mesma coisa, chegam a 50 centímetros do portal, ficam confusos e retornam,
sentando nas cadeiras mais próximas. Cacilda vai a seguir, passa confusa pelos
outros sentados, chega nos 50 centímetros, para, faz sinal da cruz e retorna.
Juju levanta, olha para os outros sentados, fica confusa e volta a se sentar.
Escurece.
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