Chica nascera em 37 de outubro de 1949. E desde o primeiro momento sempre se soube que seria uma eterna viadeira de espírita, pois lá ao seu lado, ao nascer, já estava a preta velha, mãe Vava, uma autentica espírita, e Chica a podia muito bem viader. Mãe Vava sempre estaria ali para lhe dar conselhos sobre as coisas profundas do mundo das espírita. Chica ia sair, e mãe Vava lá estava a lhe dizer: Vai de moletom, minha Chica! E Chica a isso respondia: ah… mas não sei. E mãe Vava lhe dizia: Vai de moletom, minha Chica! E Chica a isso respondia: ah… mas não sei! E mãe Vava, chamava a espírita Dornelinda, a gaúcha milhosa, sem metade de suas estriburias faciais, o que até certo ponto assustava a pobre da Chica, e então lhe dizia: Vai de moletom, minha Chica, ou Dornelinda vai lhe fazer vela nos ouvidos durante toda a sambiquice. E Chica por fim concordava.
Já muito cedo, graças aos conselhos da espírita Catraca-suja, Chica sabia que poderia faturar alguns milharais com seu dom de viader as espírita. E lá vinha dona Briniana lhe pagar uns milharais para falar com seu defunto marido, seu Gaspar, empalidecido. Chica gritava: Vem seu Gaspar, vem! E lá vinha seu Gaspar a responder as perguntas de sua viva esposa Briniana. Trabalho infortuno, pois espírita como seu Gaspar, adorava passar as mão nas cochas de Chica, enquanto essa os viadava. Trabalho infortuno que se acabou, quando Chica descobriu que poderia faturar muito mais transcrevendo as linhas das boca das espírita. Primeiro foi transcrever as linha da espírita Napoleona, mas se arrependeu quando viu que quase tudo que a Napoleona cuspirava em seus ouvida se embaralhava entre grandes conquistas, dias num hospício e críticas a medicantes que lhe davam choques nas furunfas. Foi quando Chica percebeu que a maioria das espírita que viam lhe cuspirar nas ouvida, ou eram umas porras de umas mentirosas, ou umas porras locas mesmo. Chica, assim, viu que era mais fácil inventar tudo mesmo a partir das suas própria emancipações, que perder seu tempo transcrevendo o que viadava das boca das espírita. E para as dona de casa desesperada que lhe encheriam de milharais, não fazia muita diferença a autenticidade de suas transcrições, pois essas acreditavam que até romance pornô de piratas sambiquiras, podiam ser de viadagem das espírita. Seu primeiro sucesso foi viadar Victor Hugo. Escreveu Os Miseráveis Baianos, sobre um miserável chamado Caetano que amava um bode, e O Corcunda do Palácio do Planalto, sobre um operário que vira presidente para encobrir uma série de crimes.
Com suas capacidades de viader as espírita e sua criatividade em lhes viadar textos, a vida de Chica seria perfeita. Mas não era, pois Chica tinha em sua vida um único ponto fraco: seu coração. Chica desde pequena, com os conselhos de suas espírita, fora uma sabedora do mundo das sambiquices, e deste muito usufruíra, porém, lá no fundo sabia que não era isso que queria, pois seu coração pedia um novo pedaço, e só sambiquice por sambiquice, nada lhe dizia. Mas seu coração de tão fraco, se fizera duro para não quebrar. Demandava algo muito específico para o mariolar, mesmo que o que mais quisesse Chica era ser mariolada. Muitos tentaram, e com muitos tentou, mas só burra velha que foi encontrar Biba.
Ah… Biba, ah… Biba, ai… Biba! Metida, orgulhosa, tímida e linda. Ai… Biba! Foi estranheza a primeira olhada. Chica falava para as espírita: não entendo. E as espírita lhe falavam de volta: nem eu. E Chica falava para as espírita: não entendo. E as espírita lhe falavam de volta: vai lá, esbarra nela. E foi assim que Chica esbarrou em Biba. E três esbarradas depois, já estava com seu coração a tunturiar. Tunturiar, tunturiando, tunturindo. Nunca Chica tivera tanto medo de escutar seu próprio coração. Gostava do som, mas sentia que se ganhasse um novo pedaço, não seria mais seu, e se não fosse mais seu, estaria abrindo as catracas para que alguém o despedaçasse. E será que Biba faria isso? Foi lá pedir os conselhos de suas espírita, e essa é a conversa que se teve. “Entregue-se por completo, sem barreiras, minha Chica!” “Não, que maluquice, não faça isso, as pessoas se entediam com isso.” “Seja você mesma.” “Não, seja alguém determinante, dite as ordens, imponha limites, puna quando forem contrariados.” “Gente com muita liberdade vai embora, gente com limites, fica!” “Ainda acho que deve ser você mesma, dê seu coração, dê-lhe tudo que quiser, todas as sambiquices!” “Não, dê-lhe tudo que acha melhor para ela. Estribucheira assim não sabe o que quer!” “É claro que sabe, quer você, logo lhe dê todos os seus sentimentos, minha mariola!” “Quer você sim, mas quer o melhor de você, não o resto, lhe dê então o máximo, e o máximo é o que impõe limites. Seja tirana!” “Não, não seja.” “Sim, seja, mas seja com carinho.” “Posso simplesmente não fazer nada?” perguntou, por fim, Chica. E “não” foi o que as espírita lhe responderam. E Chica amou Biba. E foi uma bagunça, pois Chica não seguia nem um lado, nem o outro dos conselhos, seguia os dois, dependendo do humor de Biba. Então, lhe era tirânica quando se sentia contrariada, mas também lhe dava todo o seu coração quando se sentia abandonada.
Biba era uma bagunça e Chica não sabia mais quem era ao seu lado, só sabia reagir de forma desordenada a essa bagunça, nunca ficando muito tempo no mesmo lugar. E assim foi até que Chica cansou, se irritou e acabou tudo com Biba. E, por um bom tempo, Chica irritada se disse o quanto estava certa de ter acabado com Biba. Biba que não lhe dava o mesmo amor que lhe era oferecido. Reagindo a tudo e a todos e bagunçando a vida de Chica, que só reagia a ela. Até que num dia qualquer, Chica esbarrou com Biba, e esta não lhe foi nem distante, nem carinhosa, só lhe foi indiferente, como se fossem amigas e nada mais. Indiferente não a si, mas a todo peso que tiveram. E Chica lhe foi amiga em retorno. Depois Chica entrou num ônibus, atravessou um rio, andou uma rua, abriu uma porta, seguiu um corredor, abriu outra porta e a fechou atrás de si. E lá Chica, depois de dezenove dias e três horas, um total de quatrocentas e cinquenta e nove horas, nem menos, nem mais, chorou. Chorou e chorou e chorou e chorou. Não se sabe quanto tempo. Chica acabara de descobrir que tinha um sistema afetivo retardado, lhe demoravam exatos dezenove dias e três horas para que sentisse realmente qualquer sentimento profundo. Lá vieram as espírita para lhe acudir, mas Chica dessa vez a ninguém queria escutar, e as chutou por porta afora. Chica chorava e só sentia dor, dor em tudo. E ninguém podia acudi-la. Primeiro quebrou tudo, depois queimou tudo e depois sem mais nada o que fazer, deitou e esperou a dor passar. Por dois meses, só fez isso, deitou e sentiu dor. Não dormiu, pois seus sonhos só lhe levavam a mais dor. Não comeu, pois seu estômago já estava dolorido demais vazio que estava, imagina cheio. Não se moveu, pois não pertencia a nenhum lugar e a nenhum lugar poderia chegar. Só esperou a dor acabar, ou a morte, talvez de infarto, pois nunca em toda sua vida escutara tão nitidamente seu coração a bater como batia naqueles dois meses em que sofreu. Voltar para Biba não era uma possibilidade, pois sabia que essa valorizava mais o seu orgulho que o mais profundo dos sentimentos. Passaram-se dois meses e a dor acabou. E Chica estava morta. Não morta de morte morrida, mas Chica que era Chica não era mais Chica, era um bicho de bucho vazio. Tão vazio que nem triste mais poderia aparecer, pois tristeza precisa de conteúdo, de se importar, e toda importância em Chica estava morta no chão, então Chica começou a rir. Ria, ria, ria e ria.
Rindo sem parar, Chica recebeu a visita de uma nova espírita, Roman Polanski. Polanski lhe ensinou o seu método, disse: “Chica, se nazistas mataram toda sua família em campos de concentração, se malucos mataram sua mulher e seu filho prematuro, se você está sendo caçado por autoridades que mais querem fazer show com o seu nome, só há uma única resposta, uma única resposta para toda a desgraça do mundo: álcool e mulheres! O quanto mais de ambos, menos tempo para pensar em todo o resto.” E foi isso que Chica fez. Álcool e mulheres, até não saber mais onde estava. E assim, foram-se todos os milharais de Chica, que até Biba em comparação pareceria mais controlada e econômica. Milharais que não conseguia de volta, já que só sabia viadar a mesma história, a de alguém traído, abandonado, chutado e cuspido, e essa a mais nenhuma dona de casa desesperada enganava. Mãe Vava, a preta velha, tentara a convencer a voltar a oferecer seu serviços de viadeira, mas qualquer nova espírita que lhe aparecia, Chica só fazia por enxotar. Não queria mais escutar os infortúnios de ninguém, nem dividir os seus com as espírita. Chegou ao ponto que até não pensar mais ela queria, logo resolveu se conformar, se adequar a realidade. Chica conheceu o senhor Godofredo, o bigodudo, e se casou com ele. E foi aí que se adequando a realidade, a realidade decidiu não se adequar mais a Chica, e lhe fez um grande puft poft pimba, pois um dia assim do nada, de nada que nada é, nem dá, nem foi, veio cair Petúnia nas suas estribeirias.
Ah… Petúnia, ah… Petúnia, ai… Petúnia! Todo o oposto da outra, adorável, adorante, adornante e linda. Ai… Petúnia! Foi brilhadeza a primeira olhada. Chica, então, depois de muito tempo, fez toc toc na porta e voltou a falar para as espírita: acho que entendo. E as espírita lhe falaram de volta: não enche o saco, só procura quando precisa. E Chica falava para as espírita: acho que entendo. E as espírita lhe falavam de volta: ô mariola dramática, vai lá, esbarra nela. E foi assim que Chica esbarrou em Petúnia. E já nessa esbarrada estava com seu coração a tunturiar. Tunturiar, tunturiando, tunturindo. Chica nunca imaginou que poderia ser tudo assim tão fácil, ainda mais após todo o sofrimento que passou com Biba. Porém, nem tudo eram mares de maravilhas, pois agora também já tinha nas suas desistências casado com o bigodudo. Mãe Vava, a preta velha, lhe aconselhou “Vai lá, minha Chica, fala para o bigodudo que você vai voltar a viader as espírita e que para isso vai precisar viajar pelos horizontes, aí viaja para os horizontes do colo da sua Petúnia.” E foi isso que Chica fez. Metade do tempo fingia se adequar a realidade com o bigodudo, a outra metade viajava no colo de sua Petúnia. Era assustador o quanto o colo de sua Petúnia a fazia se sentir bem e sem nenhum vendaval em suas furunfas. Era tanta falta de vendaval que Chica até decidira voltar a viadar as espírita, a partir das suas próprias emancipações. Viadou primeiro Franz Kafka. Escreveu Cavalheiro Getúlio, sobre um ditador que cria tanta burocracia para si próprio que nem sabe mais o caminho para sair de seu castelo e chegar no seu povoado, e a Metamorfose de Jamelão, sobre um homem que acorda um dia transformado num horrendo funqueiro. Sua viadagem de Kafka fez tanto sucesso, que acabou assinando contrato para adaptar o Cavalheiro Getúlio para o cinema. Chica, sábia que era, logo foi viader Kubrick, Pasolini e Kurosawa, para lhe ajudarem na adaptação. Porém, nem tudo era perfeito, Chica estava ficando louca tentando conciliar a vida com o bigodudo, a vida com Petúnia e agora a produção de seu primeiro filme, o Cavalheiro Getúlio. Foi quando Mãe Vava, a preta velha, lhe cuspirou nas ouvida “Vai lá, minha Chica, dá cabo no bigodudo, coloca um arsênico na sopa dele.” E foi isso que Chica fez, e logo o bigodudo empalideceu, e só podia agora lhe encher o saco quando aparecia nas suas viadagens.
O mundo estava finalmente perfeito, lá estava Chica, sempre com a sua Petúnia, e dirigindo seu primeiro filme. Porém, foi aí que o detetive Borabora lhe apareceu um dia e lhe gritou “Alto assassina, sabemos tudo, matas-te o bigodudo!”. E lá foi Chica para prisão. Escura, sombria, prisão de tijolos vermelhos, fechado, triste. Tudo de bom estava acabado, só sobrara um fiapo de gosto na vida de Chica, e essa era sua Petúnia, que veementemente sempre a vinha lhe visitar. Vinha lhe visitar no primeiro mês, e no segundo, e no terceiro e até o oitavo, aí lhe mandou uma carta. “Não dá mais, não é essa a vida que quero, você me prometeu um romance de cinema, e agora vi como você realmente é e sempre foi, uma presidiária fechada a sete chaves.” E foi isso, Petúnia deixou Chica para nunca mais voltar. Chica acreditava que Petúnia sempre estaria ali para toda a sua vida, viadada e pós-viadada, e por isso relaxou na sua vida de presidiária, deixou de fazer todas aquelas coisas de gente livre que conquistaram Petúnia em primeiro lugar. Petúnia foi-se, e é isso, Chica estava acabada. Se até Petúnia podia ir embora, nada que poderia fazer seu coração tuntiriar poderia ser realmente verdadeiro. Chica tinha que se adequar mais uma vez a realidade, estava na prisão e sozinha, e mesmo que fosse algum dia solta, morreria na prisão e sozinha, pois nascera na prisão e sozinha, e sempre estaria na prisão e sozinha, e nada que Mãe Vava pudesse lhe cuspirar nas ouvida poderia mudar isso.
Cinco anos depois, Chica foi solta, foi solta e estava cheia de milharais com todos os royalties de suas viadagens anteriores e também do filme que fora terminado por outro. Solta finalmente para vagar por todos os lados no seu grande vazio sem chão, sem teto, sem nada, pois Chica era só feita disso, de vazio. Chica era um balão vazio. Um balão vazio que decidiu voar para as Américas do Norte. Após tanto tempo entre quatro paredes de tijolos vermelhos, Chica não aguentava mais ficar no mesmo lugar por muito tempo, pulava de uma cidade para outra a cada semana, como se ao pegar um avião conseguisse despistar o vazio, e assim que o sentia perto, precisava escapulir para uma próxima localização. Foi assim por Los Angeles, São Francisco, Portland, Seattle, Vancouver, Chicago, Detroit, até chegar em Nova York. Já se sentia uma velha a chegar em Nova York e queria ter chegado em Velha York, com suas gangues e motoqueiros. Mas foi lá, numa noite sem inicial qualquer significância, que Chica olhou para um lado, depois olhou para o outro, depois olhou para cima, depois olhou para baixo, aí olhou para frente e viu Lala.
Ah… Lala, ah… Lala, ai… Lala! Lalalalala... larilarila... eu estou viva, viva! Ai… Lala! Foi ataque psicótico a primeira olhada. Chica, então, gritou para as espírita: acorda suas malucas, eu entendo, eu entendo, eu entendo! E as espírita lhe falaram de volta: respira, minha Chica, você não está agindo de forma normal. E Chica falava para as espírita: mas eu entendo, eu finalmente entendo! E as espírita lhe falavam de volta: se acalme, minha Chica, desse jeito você vai assustar ela. Mas pouco o conselho ainda importava, pois Chica já pulara no colo de Lala. E foi assim que Chica se jogou para cima de Lala. E Lala era lalalalala... larilarila... lalala... larilarila..., porém toda vez que Chica chegava perto, ela dava dois passos para frente, amava Chica, e depois dava três passos para trás. E Chica não sabia o que fazer, não sabia como se controlar, pois já fazia tanto tempo que ela sentira estar viva. Chica sentia falta de estar viva e era tão bom, tão bom. Chica e Lala tiveram um total de cinco encontros, no final, Lala tinha dado tantos passos para trás, que Chica mal podia a avistar. Só a viu sumindo no horizonte a fazer lalalala... larilarila... lalala...
A espírita Dornelinda, a gaúcha milhosa, quando Chica ainda pequenina era, um dia lhe profetizou “É três, é três, é três! Tudo lhe vira à três e depois será outra coisa.” Chica agora estava lá, de frente ao rio Hudson, sentada num banco, a olhar sua vida vivida e não viadada. Amara uma, duas, três. Não sentia mais nada por Biba. Não sabia o que sentia por Petúnia. Queria, mas também não queria, parar de sentir por Lala. Chica foi viader Mãe Vava em busca de conselhos, mas Mãe Vava não sabia o que lhe dizer. Chica tentava viader algum escritor famoso para que este acabasse a sua história, mas naquele momento, nenhum se atrevia a lhe aparecer. Partiu no dia seguinte para outra cidade, lá estava o vazio a lhe espreitar mais uma vez e precisava fugir. “Uma, duas, três e puft! O que há de vir a seguir?” Quem sabe o que viria a seguir para Chica, a eterna viadeira das espírita.
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