A Volta dos Mortos-Vivos de Dan O’Bannon

ou A revolução dos mortos não será televisionada


A Volta dos Mortos Vivos
é um filme de Dan O’Bannon, sobre a revolução dos mortos, seres putrefatos que não podem mais ser abatidos com um tiro no cabeça, que correm, desenfreadamente, sem piedade atrás do que querem e que podem muito bem gruir as suas reivindicações, além de materializá-las, ao enfiar seus dentes no cérebro do primeiro vivo que aparecer pela frente. Uma revolução para transformar todos em seres caindo aos pedaços iguais a eles.

Antes porém de se aprofundar por seu filme, vamos conhecer melhor Dan O’Bannon, um personagem que se encontra nas bases do cinema de horror e de ficção cientifica modernas. Seu primeiro trabalho foi Dark Star em 1970, um filme sobre lixeiros do espaço, a explodir com bombas atômicas, planetas que impedem o desenvolvimento de outros planetas. Seu roteiro, dirigido por John Carpenter, o mesmo que depois daria nascimento aos filmes de serial killer moderno com Halloween. Depois disso faria parte da equipe de computação gráfica de Star Wars. Na mesma época, também publicaria com o desenhista francês Moebius, a história em quadrinhos O Longo Amanhã, a qual foi a base de estilo futuristico visto em Blade Runner. Nos anos 80, além de dirigir A Volta dos Mortos Vivos, deixou sua marca em várias outras produções, como o filme Alien de Ridley Scott, seu roteiro. Nos anos 90, também foi responsável pelo roteiro de outro grande sucesso, Total Recall de Paul Verhoeven. Além de dirigir seu segundo e último filme, Renascido das Trevas, baseado no Estranho Caso de Dexter Ward de H.P. Lovecraft.

O que se segue é uma analise comentada do início do filme, sobre a verdadeira natureza da embate entre os mortos e os vivos apresentada. Não há informações sobre o desfecho da trama.

A história começa com Freddy, um jovem caipira, sendo introduzido a seu novo emprego como ajudante em um depósito de utensílios para faculdades de medicina, por Frank, o comerciante, gerente do lugar. Frank querendo assustar Freddy revela a verdade sobre o filme A Noite dos Mortos Vivos de George A. Romero. Este fora baseado em fatos reais encobertos pelo governo. Tudo ocorreu em um hospital militar e os mortos que se levantaram foram contidos e colocados em containeres. Containeres, que em parte, acabaram acidentalmente sendo enviados aquele mesmo depósito ao qual se encontram. Na sua arrogância de comerciante que conhece o seu produto, Frank mostra os containeres a Freddy e batendo neles para vangloriar sua resistência acaba por liberar um gás, que apaga os dois, dando início aos eventos que desencadearão a revolução dos mortos. Em suma, temos aqui uma bagunça do governo que acaba nas mãos de um comerciante, que em sua arrogância, abre as portas da mudança. Mas que mudança será essa?

Somos levados, porém, a outro lugar, para conhecer os outros protagonistas dessa história, um estranho amalgama de tribos da metrópole dos anos 80: Tina, a patricinha, que é a namorada do caipira Freddy; Chuck e Casey, um casal de refugos do filme Tempos da Brilhantina (Grease); Spider, o revolucionário; Trash e Suicide, o casal punk revoltado; e Spuz, um punk extra para servir de comida em alguma cena. Todos eles, amontoados dentro de um carro velho, vão se encontrar com Freddy. Chegando no lugar, entretanto o grupo têm de esperar o fim de seu expediente. Assim, sem nada o que fazer, eles invadem o cemitério local e começam uma festa.

De volta ao depósito, Freddy e Frank acordam. Desorientados e passando mal, eles saem do porão onde os containeres estavam guardados, e descobrem que todas as amostras de material morto do depósito estão agora se movendo, se revirando em suas embalagens. Entre elas, em um freezer, um corpo inteiro, o primeiro morto a reviver, uma amostra que deveria servir só para entreter estudantes de medicina, agora a gritar desesperado em sua prisão. Sendo só um caipira e um comerciante, eles não sabem o que fazer, logo ligam para Burt, o empresário, dono do lugar, a mão do dinheiro que deve saber como resolver tudo. Burt chega e decide: eles tem de se livrar daquela criatura. Só não podem chamar nenhuma das instituições do governo que poderiam lidar com isso, já que isso só ia fazer por prejudicar o negócio do depósito. Eles abrem o freezer e depois de uma corrida e um agarramento desorientado com o cadáver, enfiam uma foice na sua cabeça. Porém, esses não são os mortos de Romero, em vez de morrer, o cadáver só faz por gritar ainda mais de dor. Só há uma solução, desmembrar o cadáver e queimar todas as partes no crematório da funerária do cemitério. Ele vão para lá, passando distantes da tribo amalgama da cidade, que continua sua festa no cemitério. Trash, a garota punk, entediada, toma a óbvia decisão de tirar suas roupas e dançar em cima de uma tumba.

Chegam à funerária, e entra o último protagonista dessa história, Ernie, o agente funerário, a embalsamar corpos sempre acompanhado de sua pistola carregada. Ernie, o profissional, negocia com Burt uma troca de favores para queimar o corpo desmembrado. Levam o corpo ao forno e, assim, ali o caipira, o comerciante, o empresário e o profissional se vem livres daquele problema, ou não. O corpo queima, e como se fosse só necessária essa primeira faísca para impulsionar uma tempestade de mudança, a fumaça sai para a atmosfera, se mistura com as nuvens e dá inicio a uma chuva ácida.

A água da chuva cai sobre o cemitério, penetra pela terra e começa a pingar sobre os mortos. Só uma faísca de uma ideologia diferente é necessária para desencadear uma horda de mortos a se levantar. Lá estão naquele cemitério os refugos da sociedade, aqueles não mais necessários a esta por sua natureza morta, com seus corpos caindo aos pedaços, deformados, putrefatos, cheios de dor, agora a se levantar mais uma vez. Uma horda se fazendo pela primeira vez indistinta, finalmente estão unidos por uma única razão, finalmente com um único objetivo, acabar com a dor de estar morto. Em vida eles aceitaram tudo que a sociedade lhes condicionou, obedeceram de cabeça abaixada, separados, individualizados. Eles trabalharam pela sociedade, seguiram tudo que lhes era ditado, deixaram seus corpos se moldar como ferramentas para o dinheiro, comeram todas as porcarias que lhes enfiaram, e agora mais uma vez estão de pé. Porém, pela primeira vez eles estão de olhos bem abertos a sua condição, e sentem na carne a tudo que se sujeitaram em vida.

Restam as tribos do dinheiro agora tentar sobreviver as hordas de mortos que começam a jorrar do cemitério, se refugiando atrás de paredes de concreto, atrás de janelas reforçadas com madeira, se fechando no seu conforto falso. A horda, por sua vez, diferente dessas tribos do capital com denonimações e fantasias diferentes, não precisa se diferenciar para se sentir especial. Cada um ao ser devorado, não importa o que era antes, se comerciante, se punk, se profissional, se político, acabará do mesmo jeito, mais um na horda dos mortos. Mortos que nas suas próprias palavras só querem uma coisa: “Cérebros!!! Cérebros!!! Cérebros para acabar com a dor de estar morto!”. Pois eles sabem a verdade, toda as suas vidas eles viveram na ignorância, aceitando a interpretação do pai e da mãe capital para a realidade, agora eles sabem que só há uma forma de sair de sua alienação: cérebro, inteligência. Só a inteligência pode salvá-los de uma sociedade corrosiva. Porém, vamos falar a verdade, o que comer cérebros pode adiantar agora que o estrago foi feito? Pouco, muito pouco. Já é tarde demais, talvez comendo os cérebros dos ainda vivos, eles consigam comer um pouco de sua alienação para aplacar a dor. Mas nenhum cérebro agora poderá devolver os seus corpos ao que eram antes, nenhum cérebro poderá lhes devolver todas as oportunidades lhes roubadas por uma sociedade que só lhes queria como burros de carga, só como bestas ignorantes a produzir suas inutilidades, a deixar atrofiar os seus corpos a tudo que não fosse aos movimentos mecânicos de suas tarefas, a deixá-los a se ludibriar com entretenimentos que só faziam por mais estagnar as suas mentes, e a encher suas panças com substâncias que nada mais faziam do que dar-lhes uma energia barata e temporária, enquanto desorientava suas mentes, viciava seu sangue e denegria sua carne.

Nessa revolução dos mortos não há mais caminho para a liberdade, não há salvação, só há a substituição da anterior homogeneização do capital através de um aprofundado abobamento, pela homogeneização do ver e sentir a verdade tarde demais. Qual a diferença entre trabalhar num escritório, chegar em casa para ver tv e comer besteiras, para sair correndo pela rua, com seu corpo caindo aos pedaços, atacando pessoas e comendo seus cérebros? Praticamente nenhuma, apesar da segunda opção soar como mais divertida. A verdade é que nessa condição é tarde demais para uma revolução real. É tarde demais para mudar quando se está morto.

O filme de Dan O’Bannon se estabelece como um clássico do horror. Um horror, também conhecido por suas pitadas de comédia. Já que jorra humor na representação realista do comportamento humano em uma situação desesperadora. Além disso temos um ótimo espetáculo de direção e de efeitos especiais, que criam em equilíbrio os momentos tanto reveladores, tanto de mistério, tanto claustrofóbicos, necessários a trama.
Um detalhe curioso sobre o filme é que apesar da produção ter sido inicialmente processada por George Romero pelo uso do nome mortos vivos. O filme em si também pode ser considerado uma direta continuação de A Noite dos Mortos Vivos, pois o filme é baseado em um livro de John Russo, o roteirista do filme de Romero, que após se desentender com o mesmo sobre o rumo da franquia, decidiu fazer sua própria versão. O processo foi retirado assim que Romero teve oportunidade de ver o filme. A este filme se seguiram 4 continuações não muito boas. O dois é praticamente um remake do original, até com a volta dos mesmos atores que fizeram a dupla Freddy e Frank. Uma versão de comédia com teor familiar e com o protagonista como uma criança. Basicamente, um horror, no sentido material da palavra, com alguns momentos interessantes, que fazem sofrem aquele que queria uma continuação a altura do original. O terceiro é mais um romance com a presença de alguns mortos vivos, do que realmente um filme de mortos vivos. Se o espectador não ir esperando nada mais além disso, até que é um bom filme, dirigido por Brian Yuzna, o mesmo de Re-Animator. Já o quarto e o quinto, que só foram lançados recentemente por uma produtora diferente, são um crime contra humanidade, que nem merecem a atenção necessária para serem recolhidos e queimados.

Nenhum comentário: