ou Lixo e Lixo: Qual a diferença?
Boca de Lixo é um documentário do diretor Eduardo Coutinho que busca mostrar a realidade das pessoas que vivem catando lixo num lixão de São Gonçalo. O diretor, sem apresentar julgamentos, mostra o cotidiano dessas pessoas, dia a dia a esperar os caminhões de lixo, geração sob geração, seguindo normalmente a vida.
A primeira questão que se apresenta sobre esse modo de vida, não se dá realmente sobre este em si, mas sim, sobre sua interpretação, tanto pelos que nele se sustentam, tanto pelos exteriores a este. Pois, ideologicamente, os catadores de lixo são considerados como excluídos da sociedade por aqueles que não o são, sobrevivendo de seus restos, não compartilhando dos reais frutos desta sociedade. Quando, na verdade, não o são, sendo membros muito bem ativos desta, seguindo avidamente todos os seus preceitos, a completar um ciclo capitalista de consumo interminável de produtos. Tendo, eles próprios, consciência disso e também da visão deles propagada pelos exteriores à sua condição.
Os catadores de lixo, sendo um grupo composto por pessoas de diferentes origens e com diferentes motivos de ali estar, têm diferentes interpretações para sua condição. Assim, alguns a aceitam honradamente por a considerarem o último nível aceitável acima do roubar; isto serve para mostrar como pertencem a sociedade vigente, renegando o que esta considera como crime. Enquanto, outros a aceitam por simplesmente a considerarem como uma tarefa como qualquer outra, a ser praticada por aqueles sujeitos aos níveis mais baixos desta sociedade. Em suma, existem muitas respostas para o porquê de estarem no lixão, mas todos têm em comum sempre a questão de se verem presos nas piores condições que esta sociedade considera ter a oferecer economicamente, ao mesmo tempo que desconhecem a idéia de a esta não pertencer. Os exemplos óbvios disso se encontram nas próprias definições de seu cotidiano, como a definição do que é ou não lixo, do que é ou não honroso aceitar, do que é ou não comportamento civilizado; por fim, na própria divisão da vida entre a do trabalho no lixão, como a daqueles no mais baixo aceitável, e a dentro de suas moradias, como a de membros da sociedade que seguem seus padrões de comportamento e suas organizações diárias.
Ficam, então, duas interpretações dos catadores de lixo: a deles mesmos, como membros do nível mais baixo, mas ainda honroso, da sociedade; e a dos exteriores, como excluídos da sociedade. Assim, há de se notar que ambas essas interpretações estão presas a essa própria sociedade, que enfim as cria. Pois, excluindo-se as definições que esta sociedade cria para si mesma, pouco sobra de real e perguntas se apresentam. Como, qual é a real diferença entre a condição de vida de um catador de lixo, de uma secretária e de um empresário? Existe alguma diferença?
Comecemos, assim, pelo lixo: o que é realmente este lixo? O primeiro ponto que leva os catadores de lixo a serem colocados no nível mais baixo da sociedade, do seu ciclo de capital, é seu contato com o lixo, os supostos restos desta sociedade. Mas, se considerarmos como lixo, aquilo que é inútil, que não serve para mais nada, como a própria sociedade diz, e depois somado a isso, excluirmos também as ilusões que esta mesma sociedade dá a seus produtos, ilusões que cria para que estes sejam consumidos, acabaremos por vê-los como completamente desnecessários, inúteis, e, assim, como realmente são: um gigantesco amontoado de lixo. Um amontoado que só se diferencia do encontrado no lixão, por estar embalado e dividido em prateleiras. Se a sociedade se baseia no consumo do inútil, do lixo, não importa realmente como esse lixo se encontra. Logo, todos os seus membros são ávidos catadores de lixo.
Seguimos, então, com outro ponto considerado importante pelos catadores: a honra. O que é mais honroso? O que move as pessoas subjugadas por uma sociedade é como ser aceito ativamente por ela, como pertencer completamente a ela. Nisso há uma divisão entre vários níveis de honra que classificam a posição em que nela se ocupa. Classificação em que catar lixo é pouco honroso, mas é pelo menos mais que roubar, mas sempre menos que, digamos, advogar. De novo, o que faz de uma tarefa honrosa é o mesmo princípio da existência dos produtos, sua utilidade real, e de novo, excluindo as ilusões que a sociedade cria para continuar vendendo, o que sobra nessa divisão de tarefas são suas diferentes formas de vender os diferentes produtos inúteis, e as diferentes formas de impedir que os membros dessa sociedade se matem lutando por essas inutilidades. Assim, a maioria das tarefas desta sociedade são inúteis e não têm nenhuma honra. Logo, em honra, não há nível mais alto, nem mais baixo, empresário e catador de lixo são iguais.
Mas e a condição de vida? Se já chegamos a conclusão que a definição de lixo e de honra não servem de nada para diferenciar os catadores de lixo do resto, o que resta é dividi-los pelos privilégios que têm ou não têm. Mas primeiro há de se definir esses privilégios, para depois perguntar quais seriam esses privilégios que a sociedade oferece as suas camadas mais abastadas e renega as menos. Privilégios são luxos dados a alguém sem o devido merecimento. Fora desse esquema, todo luxo é uma compensação a um devido esforço. Luxo que é, em si, ainda uma outra definição dependente da sociedade que a cria. Vejamos, como exemplo, um empresário, um suposto abastado, na sua função de acumular desesperadamente dinheiro, essa abstração do sistema, este faz um esforço bem maior que o quê só faz tarefas físicas, porém essas suas tarefas mentais não são vistas como realmente dispendiosas pela maioria da sociedade, por essa ainda ser subjugada a tarefas físicas. Tendo, assim, sua compensação interpretada por privilégio, e não como realmente é, uma equivalência a um esforço. Um esforço, claro, ainda a praticar tarefas completamente inúteis. Logo, na questão de esforço e compensação este se equipara também ao do catador de lixo.
Mas e os que não fazem esforço e ganham luxo não merecido? Há também os políticos, que no seu usual estado de corrupção, recebem realmente privilégios, luxo sem esforço. Porém, este luxo se auto-anula, já que sendo estes políticos quem são, estão presos nos conceitos dessa sociedade a que pertencem, a sempre consumir o desnecessário desesperadamente. Assim, todo o seu luxo não merecido é rapidamente transformado, pelo consumo das inutilidades, em esforço, colocando eles na mesma condição dos catadores de lixo, só que catando mais do que podem suportar.
Enfim, o estado dos catadores de lixo, de todos eles, não só dos que o filme considera como tais, é deplorável, por todos estarem presos em uma completa alienação. Mas não em uma do produto da sua própria força de trabalho, pois este é só mais um conceito imposto pela sociedade, mas sim, em uma do seu próprio poder como ser humano, de todas as suas reais capacidades que são constantemente aniquiladas por toda a inutilidade forçada pela sociedade.
Boca de Lixo é um documentário do diretor Eduardo Coutinho que busca mostrar a realidade das pessoas que vivem catando lixo num lixão de São Gonçalo. O diretor, sem apresentar julgamentos, mostra o cotidiano dessas pessoas, dia a dia a esperar os caminhões de lixo, geração sob geração, seguindo normalmente a vida.
A primeira questão que se apresenta sobre esse modo de vida, não se dá realmente sobre este em si, mas sim, sobre sua interpretação, tanto pelos que nele se sustentam, tanto pelos exteriores a este. Pois, ideologicamente, os catadores de lixo são considerados como excluídos da sociedade por aqueles que não o são, sobrevivendo de seus restos, não compartilhando dos reais frutos desta sociedade. Quando, na verdade, não o são, sendo membros muito bem ativos desta, seguindo avidamente todos os seus preceitos, a completar um ciclo capitalista de consumo interminável de produtos. Tendo, eles próprios, consciência disso e também da visão deles propagada pelos exteriores à sua condição.
Os catadores de lixo, sendo um grupo composto por pessoas de diferentes origens e com diferentes motivos de ali estar, têm diferentes interpretações para sua condição. Assim, alguns a aceitam honradamente por a considerarem o último nível aceitável acima do roubar; isto serve para mostrar como pertencem a sociedade vigente, renegando o que esta considera como crime. Enquanto, outros a aceitam por simplesmente a considerarem como uma tarefa como qualquer outra, a ser praticada por aqueles sujeitos aos níveis mais baixos desta sociedade. Em suma, existem muitas respostas para o porquê de estarem no lixão, mas todos têm em comum sempre a questão de se verem presos nas piores condições que esta sociedade considera ter a oferecer economicamente, ao mesmo tempo que desconhecem a idéia de a esta não pertencer. Os exemplos óbvios disso se encontram nas próprias definições de seu cotidiano, como a definição do que é ou não lixo, do que é ou não honroso aceitar, do que é ou não comportamento civilizado; por fim, na própria divisão da vida entre a do trabalho no lixão, como a daqueles no mais baixo aceitável, e a dentro de suas moradias, como a de membros da sociedade que seguem seus padrões de comportamento e suas organizações diárias.
Ficam, então, duas interpretações dos catadores de lixo: a deles mesmos, como membros do nível mais baixo, mas ainda honroso, da sociedade; e a dos exteriores, como excluídos da sociedade. Assim, há de se notar que ambas essas interpretações estão presas a essa própria sociedade, que enfim as cria. Pois, excluindo-se as definições que esta sociedade cria para si mesma, pouco sobra de real e perguntas se apresentam. Como, qual é a real diferença entre a condição de vida de um catador de lixo, de uma secretária e de um empresário? Existe alguma diferença?
Comecemos, assim, pelo lixo: o que é realmente este lixo? O primeiro ponto que leva os catadores de lixo a serem colocados no nível mais baixo da sociedade, do seu ciclo de capital, é seu contato com o lixo, os supostos restos desta sociedade. Mas, se considerarmos como lixo, aquilo que é inútil, que não serve para mais nada, como a própria sociedade diz, e depois somado a isso, excluirmos também as ilusões que esta mesma sociedade dá a seus produtos, ilusões que cria para que estes sejam consumidos, acabaremos por vê-los como completamente desnecessários, inúteis, e, assim, como realmente são: um gigantesco amontoado de lixo. Um amontoado que só se diferencia do encontrado no lixão, por estar embalado e dividido em prateleiras. Se a sociedade se baseia no consumo do inútil, do lixo, não importa realmente como esse lixo se encontra. Logo, todos os seus membros são ávidos catadores de lixo.
Seguimos, então, com outro ponto considerado importante pelos catadores: a honra. O que é mais honroso? O que move as pessoas subjugadas por uma sociedade é como ser aceito ativamente por ela, como pertencer completamente a ela. Nisso há uma divisão entre vários níveis de honra que classificam a posição em que nela se ocupa. Classificação em que catar lixo é pouco honroso, mas é pelo menos mais que roubar, mas sempre menos que, digamos, advogar. De novo, o que faz de uma tarefa honrosa é o mesmo princípio da existência dos produtos, sua utilidade real, e de novo, excluindo as ilusões que a sociedade cria para continuar vendendo, o que sobra nessa divisão de tarefas são suas diferentes formas de vender os diferentes produtos inúteis, e as diferentes formas de impedir que os membros dessa sociedade se matem lutando por essas inutilidades. Assim, a maioria das tarefas desta sociedade são inúteis e não têm nenhuma honra. Logo, em honra, não há nível mais alto, nem mais baixo, empresário e catador de lixo são iguais.
Mas e a condição de vida? Se já chegamos a conclusão que a definição de lixo e de honra não servem de nada para diferenciar os catadores de lixo do resto, o que resta é dividi-los pelos privilégios que têm ou não têm. Mas primeiro há de se definir esses privilégios, para depois perguntar quais seriam esses privilégios que a sociedade oferece as suas camadas mais abastadas e renega as menos. Privilégios são luxos dados a alguém sem o devido merecimento. Fora desse esquema, todo luxo é uma compensação a um devido esforço. Luxo que é, em si, ainda uma outra definição dependente da sociedade que a cria. Vejamos, como exemplo, um empresário, um suposto abastado, na sua função de acumular desesperadamente dinheiro, essa abstração do sistema, este faz um esforço bem maior que o quê só faz tarefas físicas, porém essas suas tarefas mentais não são vistas como realmente dispendiosas pela maioria da sociedade, por essa ainda ser subjugada a tarefas físicas. Tendo, assim, sua compensação interpretada por privilégio, e não como realmente é, uma equivalência a um esforço. Um esforço, claro, ainda a praticar tarefas completamente inúteis. Logo, na questão de esforço e compensação este se equipara também ao do catador de lixo.
Mas e os que não fazem esforço e ganham luxo não merecido? Há também os políticos, que no seu usual estado de corrupção, recebem realmente privilégios, luxo sem esforço. Porém, este luxo se auto-anula, já que sendo estes políticos quem são, estão presos nos conceitos dessa sociedade a que pertencem, a sempre consumir o desnecessário desesperadamente. Assim, todo o seu luxo não merecido é rapidamente transformado, pelo consumo das inutilidades, em esforço, colocando eles na mesma condição dos catadores de lixo, só que catando mais do que podem suportar.
Enfim, o estado dos catadores de lixo, de todos eles, não só dos que o filme considera como tais, é deplorável, por todos estarem presos em uma completa alienação. Mas não em uma do produto da sua própria força de trabalho, pois este é só mais um conceito imposto pela sociedade, mas sim, em uma do seu próprio poder como ser humano, de todas as suas reais capacidades que são constantemente aniquiladas por toda a inutilidade forçada pela sociedade.
Um comentário:
Autor: adriana
Email: drih2@hotmail.com
Comentário:
Entendi até onde você quis chegar com a sua própria analise de Boca de Lixo. Me parece que você assimilou bem alguns pontos, mas observa o conteudo, apenas pelo conteudo. O filme é um recorte, um pedaço, que procura estabelecer contato direto com a vida dos catadores, procura mostrar "a realidade" em um curto espaço de tempo, mas não a mostra em realidade, em verdade. O que eu entendi de alguns de seus comentários é que você chegou a conclusões estranhas, baseadas em estigmas sociais e procurando ver a situação dos catadores de lixo como algo comparavel a qualidade de vida de pessoas que claramente possuem, em termos materiais, muito mais do que eles. Você ignora o fato de que, mesmo que a sociedade inteira viva de lixo - o que é de fato verdade, uma vez que tudo o que é consumido será "jogado fora" no futuro - a diferença fundamental entre os catadores e os empresários, por exemplo, é na qualidade do lixo oferecida. É obvia e gritante a diferença entre
os dois. Vamos pensar o filme de Coutinho como sim uma denuncia social, mas vamos analisa-lo em sua forma fílmica.
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