comparado com Brilhante de Conceição Senna
ou Deuses, homens e as mulheres que os documentam
Apocalypse de um Cineasta é um documentário filmado por Eleanor Coppola, e depois montado pela equipe Fax Bahr e George Hickenlooper, sobre a produção do filme Apocalypse Now por seu marido Francis Ford Coppola.
Brilhante é um documentário dirigido por Conceição Senna, sobre a produção do filme Diamante Bruto por seu marido Orlando Senna e sobre a cidade de Lençóis e sua população.
Apocalypse Now e Diamante Bruto. Contrapondo ambos, somos apresentados a dois opostos: em conteúdo, um filme insano, feito por uma mente insana, em oposto a um filme comum, feito por uma mente comum; e em produção, um filme capitalista, feito pelo dinheiro, pai e filho da loucura, em oposto a um filme socialista, feito pelo povo, pai e filho do comum.
Coppola, deus insano, ou homem comum que nos é apresentado com tais contornos, deseja fazer filme baseado no livro Heart of Darkness. História controversa, renegada pelos estúdios e ainda politizada pelo próprio diretor através da inserção em sua trama da guerra do Vietnã, guerra psicológica recém perdida pelo Império. Ele o quer, ele o faz. Com seu próprio dinheiro, investimento milionário provindo do sucesso de filmes anteriores, Coppola assume o papel de Deus criador e parte para fazer seu filme. O dinheiro a tudo compra e a tudo faz. Um pedaço das Filipinas, país em guerra civil, se torna seu estado; sua população, seus escravos; seu exército, seus guerreiros. Tudo organizado, tudo cronometrado, a calmaria antes da tempestade. “Havia muitos de nós, nos tínhamos acesso a equipamentos demais, dinheiro demais, e pouco a pouco nós fomos enlouquecendo.” Poder, poder, poder. Quanto mais poder, mais possibilidade de criação e mais há o desejo de criar. Por que o simples, o pequeno, quando se pode fazer o complexo, o abundante. A tempestade vem, a guerra começa, os helicópteros são levados, a água a tudo draga. Mais e mais o caos toma seu lugar de direito, a loucura domina. Menos de um ano, tornam-se três. Ator morre e ressuscita. O fim não é bom o suficiente, tem de ser mudado. Ícone aparece. O deus do passado caminha sobre o país do presente a improvisar na escuridão. Poder demais, equipamento demais, dinheiro demais. A obesidade se esconde nas sombras, com vergonha, comendo melancia. “O horror! O horror!” O filme é completo, sua empreitada é constantemente ridicularizada, o diretor está falido. Sucesso, o filme é genial, se paga em poucas semanas. O dinheiro dá de comer ao dinheiro. A loucura é controlada.
“Você já viu o filme Apocalypse Now?”
“Sim, algumas vezes.”
Senna, homem comum, que nasce, cresce, se reproduz e morre, deseja fazer filme em sua cidade natal, Lençóis, na Chapada Diamantina. História, qualquer uma; acaba por ser a de um autor do próprio lugar; socialmente controversa para a época, politicamente, nula. Ele o quer, ele consegue algum investimento, ele o faz. Com a colaboração de todo o povo da cidade, Senna, como homem comum, coordena outros homens comuns para fazer o filme comum. Todos aparecem em tela, todos se sentem especiais por alguns segundos. O que é simples, se mantém simples. O filme é completo, todos assistem alegremente suas aparições.
“Você já viu o filme Diamante Bruto?”
“Quê?”
Um homem tem mais chance de mudar a sociedade pela busca de um sucesso individual, do que pela busca de um sucesso coletivo. Apocalypse Now é lembrado e assistido, não por ser um filme que vem do centro do Império, mas porque é um filme sobre a loucura, o desespero, o horror, os mais comuns sentimentos humanos, sentimentos atemporais. O filme, mesmo longe da perfeição, faz efeito por ser fruto desta própria loucura, desespero e horror, que dominam o processo de criação, dançando alegremente com o poder do dinheiro, com o deus obeso que se esconde nas sombras. Diamante Bruto é completamente desconhecido, não por ser um filme das periferias do Império, mas porque é um filme comum, ficcional, sobre sentimentos fictícios. O filme não faz efeito, pois o homem comum é uma ficção histórica, que é dependente desta, sendo, logo, temporal.
Apocalypse de um Cineasta é fruto de uma distração, proposta por Coppola, a sua esposa, para esta passar o tempo durante as filmagens. Não tendo originalmente razões de criação e só vindo a ser montado como documentário anos mais tarde por outros. Porém, servindo perfeitamente como relato vivo da produção do filme, documentando desdo cotidiano do trabalho à momentos pessoais. Fazendo efeito, em muito, por sua falta de compromisso com um produto final, sua liberdade de não limitar o conteúdo a fins públicos, mas sim, a pessoais.
Brilhante é fruto recente de um projeto de Conceição Senna de mostrar como o cinema pode modificar uma cidade. Não necessariamente se dedicando a documentar o filme, mas sim, a relação entre este e o povo da cidade. Contando com muito pouco material filmado na época, se apoiando mais em entrevistas atuais. O filme busca mostrar a suposta modificação de Lençóis produzida pelo filme Diamante Bruto e acaba sofrendo do mesmo problema deste, ficando preso a uma interpretação limitada da ficção histórica. Pois, não há mudança, Lençóis só passa de cidade abandonada à cidade abandonada com turistas e sua população, de catadores de diamantes à servos de estranhos. Nada que não tenha acontecido com muitas outras cidades interiores brasileiras, tendo no máximo o filme intensificado esse processo e mais nada. Não houve modificação social, e a questão do filme ser tão bem lembrado pelos habitantes da cidade mostra isso perfeitamente, pois este provavelmente foi a coisa mais interessante já feita por eles, que em si, se mantiveram inalterados na sua vida comum e ficcional. Ninguém, nem mesmo a atriz principal do filme original, que foi levada embora como lembrança por um suíço, se modificou, ou evoluiu de qualquer forma como ser humano. E o mesmo desejo de fuga para algo melhor, algo distante, se mantém presente nos que ainda têm olhos para ver. Por fim, a diretora querendo reproduzir o suposto efeito do filme original de modificação, clama pelo reconhecimento dos mineradores que não se adaptaram a nova forma de servidão, como se esta tivesse alguma diferença da anterior.
“O horror! O horror!” ecoa ainda pelo tempo, enquanto os deuses dormem, os homens caminham e suas mulheres documentam. Só Francis Ford Coppola, deus insano, ou homem comum nos vendido como tal, se sobressai nesse quadro para fora da ficção histórica. Esta que se faz presente até na apresentação dos agentes que são aqui comentados, homens que fazem filmes e mulheres que os documentam, um fragmento explicito de uma sociedade ainda patriarcal. Fragmento também só quebrado por Coppola, o deus que dorme, através de sua prole, Sofia Coppola, que assume atualmente natureza divina.
Um comentário:
Caro Daniel, tú fizestes uma comparação interessante. Entretanto, creio que seja uma anacronismo comparar "Apocalipse Now" com "Diamante Bruto".Ora, toda produção brasileira tem as suas limitações. Ainda mais quando tratamos de uma fotografia social da década de 70. Por outro lado, admito a sua comparação do ponto de vista do efeito literário e retórico.
Quanto ao documentário "Brilhante", penso que a diretora valoriza demais a obra de seu marido. Conheço de longa data a região de Lençóis-BA e garanto que o filme ali realizado contribuiu muito pouco para o desenvolvimento do turismo na região. Serviu, sim, como um primeiro contato da população brasileira com a Chapada Diamantina, mas a quantidade de curiosos que tão logo para lá se deslocaram não passou de um punhado de forasteiros aventureiros. Não tratou, o documentário, da corrida dos produtores do café para a região, quando a ferrugem devastou os cafezais brasileiros e o IAC descobriu que aquela região era a única que restava imune e agricultável. Esqueceu-se de citar a construção, pelo exército, da BR-242, que facilitou em muito o acesso à região. Não citou as políticas de incentivo ao turismo promovidas pelo Governo do Estado da Bahia, com a construção do aeroporto internacional e o financiamento de hotéis etc.
O fato é que o boom turístico na região só veio a ocorrer nos albores da década de 1990, quando, após realizada toda uma infra-estrutura por governo e particulares, o governo do Estado financiou o Globo Repórter a fazer uma série de reportagens sobre a Chapada.
Dificilmente um filme, por si só, conseguiria modificar o panorama econômico da região. Todavía foi capaz de denunciar as mazelas sociais ali encontradas.
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