O Relato da Vida da Terrível Criatura, que vive na Caverna Sombria, chamada Loid Cap. 1 e 2

O Relato da Vida da Terrível Criatura, que vive na Caverna Sombria, chamada Loid é um livro, ou um post em um blog, ou um seguimento de 0s e 1s no holograma da realidade, uma história infinita que se passa em nenhum lugar e em todos, seguindo o dia, ou noite, ou nada, de um ser que é também nenhum, ou todos, ou um homem, ou um réptil, ou um pássaro, ou simplesmente um monstro. Um dia em que caminha por uma caverna sombria, ou uma floresta, ou uma casa antiga, e encontra por seu caminho personagens como Alice, do País das Maravilhas, Adolf Hitler e uma porta. 


1. Sangue...

            - Sangue...

            Sangue é tudo que vê em suas mãos a terrível criatura, que vive em uma caverna sombria, e é conhecida pelo povo de um vilarejo próximo como a “Terrível Criatura que vive na Caverna Sombria”. Mas que, entretanto, não tem nome, por ser completamente inominável, apesar de, na verdade, realmente gostar de se auto-intitular “Loid”. E que, assim, será nomeada neste relato de sua vida, que na sua publicação - se esta já não ocorreu, ou melhor, se esta algum dia realmente chegar a ocorrer - será - ou é, ou nunca será - chamado “O Relato da Vida da Terrível Criatura, que vive na Caverna Sombria, chamada Loid”.

            Voltemos então a este tão importante relato. Então, quem é Loid? Como ele é? Por que é tão temido pelo povo do vilarejo próximo? Creio que não havia mencionado anteriormente o temor do povo do vilarejo próximo, mas isso não é importante agora. Essas são perguntas a serem respondidas em um futuro possivelmente próximo, ou talvez nunca, ou talvez já foram respondidas e você leitor simplesmente as esqueceu. Mas, o que é importante agora, é o sangue que se encontra nas mãos de nosso querido Loid. Por que querido? Você terá essa resposta lendo esse relato, ou talvez não! Talvez você aprenda a chamá-lo de o terrível Loid. Quem pode realmente dizer que tipo de julgamento tirará desse fatídico, talvez alegre, talvez tedioso relato? Certamente, não eu. Provavelmente, nem um pouco você.


Vejo que já demorei demais a iniciar essa história, então voltemos ao ponto de partida. Onde está nosso querido Loid? Em sua caverna sombria, a qual não é dono, já que a Loid nada pertence e nada pode pertencer. Loid vê suas mãos, ou patas, ou garras, ou ganchos, ou asas, ou nadadeiras, ou simultaneamente todas, ou constantemente nenhuma, cobertas de sangue, o qual é proveniente de sua pele, a qual é igual a de um mamífero, ou ave, ou réptil, ou inseto, ou peixe, ou constantemente todas, ou simultaneamente nenhuma. Loid murmura uma única palavra na imensidão da caverna sombria e a escuta ser repetida:

- Sangue... Sangue... Sangue...


Loid sabe porque está sangrando, pois nadou no rio de vidros que desemboca no centro da caverna sombria, esta que já não é tão sombria assim, já que este estranho rio reflete a luz do sol sobre as suas paredes. Sol que não vem do exterior da caverna. Pois há muito o sol não paira sobre aquela terra desolada, onde há um inverno constante que pode ser visto até onde a visão de um cego consegue alcançar. A luz que é refletida pela chamada caverna sombria através do rio de vidros, não vem de sua superfície, mas sim de sua nascente, que se encontra muito além em um lugar totalmente conhecido, porém provavelmente desconhecido. Essa luz vem refletida pelos milhares, eternos, pedaços de vidro que correm por esse rio. Pedaços que escondem, cada um, diferentes eternos infinitos. Assim, todas as manhãs daquela terra sem sol, Loid mergulha nesse rio e nada. Nada por tudo que foi, tudo que é e tudo que será; por todo o imaginado, por todo o não imaginado, por todo a ser imaginado. Tem, então, milhares de afiados pedaços de vidro, que escondem o reflexo de universos, perfurando sua pele. Cortando-a, enquanto perdida, deslizando entre essas finas pontas esta se encontra, enquanto todas a encontram em retorno. Logo, após o tempo se esgotar no infinito e reiniciar em uma explosão, Loid volta a sua caverna, que não pertence a ele, ou a mais ninguém, mas que ele gosta de clamar para si. Ao sair deste rio todas as manhãs, Loid pára, esfrega suas mãos em sua face, já que tem ambas e nada pode negar sua existência. Vê com seus olhos, que também tem, e só sua quantidade e forma podem ser questionadas, suas mãos com o vermelho do sangue, já que Loid não só tem olhos, como também pode identificar cores. O sangue o cobre completamente e o intenso escarlate vibra com tudo que é, não podendo realmente ser.

Essa é a principal rotina de Loid todas as manhãs da terra onde não há sol e onde um inverno constante reina. Uma rotina que não é rotina, pelo menos não para Loid, que não tem boa memória, ou talvez tenha uma ótima memória, só que não consegue se lembrar do que fez no passado, que é anterior a seu mergulho no rio de vidro, o qual dura uma infinidade de tempo.

Loid sente dor ao ver o sangue, o que é interessante, já que Loid não tem sangue, ou a capacidade de se machucar. Talvez Loid só goste de pensar que tem sangue e que pode se machucar. Mas isso é um mistério, já que a mente de Loid é um mistério, que não pode ser analisado, só seus atos, os quais não tem. Então, também pode se pensar que Loid não saiba que não tem sangue e que, assim, não pode se machucar. Talvez alguém haja lhe contado uma mentira, a qual Loid acreditou. Logo, talvez, suas mãos, face e olhos também sejam uma mentira e possam sim ser questionadas. Porém, elas sempre existiram, ou talvez não.

Loid não limpa o sangue, que acaba secando em sua pele, que talvez não exista. Assim, fica completamente vermelho para todos os cegos que queiram vê-lo, já que sem vida o vibrante escarlate não mais é. Estando ajoelhado, com pernas, que não devem ter sua existência questionada, mas que talvez não existam, na margem do rio de vidro, ele se levanta e caminha para uma das muitas saídas da caverna sombria. Já que Loid, além de ter pernas, tem a capacidade de andar, ou pelo menos acredita ter.

A caverna sombria é bem extensa e leva a muitos lugares, talvez reais, talvez irreais, talvez só imaginados por Loid. Quem sabe, talvez não vá a lugar nenhum, talvez a caverna sombria seja realmente pequena e sem saídas. Vamos supor por enquanto que a única saída real é a que leva ao caminho do vilarejo próximo, este que talvez só seja imaginado. Supondo isso, vamos acompanhar Loid, enquanto ele caminha para uma das muitas saídas da caverna sombria que não é a saída para o vilarejo próximo, já que esta talvez seja a única saída real, que talvez não exista. Ele contorna o rio de vidro e vê seu caminho impedido por uma pequena pedra quadrada, talvez retangular, talvez trapezóide, definitivamente com muitos lados, definitivamente não esférica. Pedra que antecede um gigantesco penhasco, ou talvez um firme plano rochoso. Loid pára em dúvida sobre seguir ou não. E, assim decide não seguir. Mas por obra da sorte, a qual Loid tem pouca e o leitor obviamente muita, já que se não a tivesse a história acabaria agora, Loid é impelido a seguir por uma estranha e nova sensação de temor. Segue, dá um passo à frente, ultrapassa aquela pequena pedra e, então, cai, cai uma imensidão, para o firme plano rochoso a sua frente, um degrau a cima. Nessa nova, extremamente velha, parte da caverna sombria, ele se depara com as muitas saídas talvez reais, talvez irreais, talvez imaginadas, dessa mesma caverna sombria. Todas para muitos, talvez poucos, lugares distantes, ali perto. Saídas que talvez sejam as estradas de outras saídas distantes, provavelmente também ali perto.

Loid sente o temor que o impulsionou a seguir aumentar. Sabe que um grande mal se aproxima, um que apesar de sempre todas as manhãs o impulsionar para frente, não pode se lembrar, já que faz tanto tempo que se deparou com ele, num distante dia atrás, antes do mergulho no rio de vidros. Loid, então, segue por uma das muitas saídas da caverna sombria, uma logo à sua frente, bem distante, logo atrás de onde está, uma que apesar de Loid não se lembrar de nada, lhe parece a mais propícia, levando-o a uma nova caverna. Uma pequena caverna bem quente, com pedras emanando um constante calor escaldante, que emite uma intensa luz vermelha, queimando tudo que ali se encontra. Loid é coberto pelo vermelho, que queima todo o seu corpo, reavivando o sangue seco que o cobre. Ali, tudo ao seu redor se embaça, as paredes parecem pulsar constantemente, expandindo e retraindo um eterno vácuo. Loid espera ficar seguro nessa nova caverna contra o grande mal que continua a se aproximar, obviamente perseguindo-o.

Loid escuta os passos do grande mal que se aproxima, já que também tem, ou acredita ter, a capacidade de escutar. Tendo orelhas, ou pelo menos algum tipo de aparelho auditivo, ou talvez não os tenha e só imagine poder escutar, sem imaginar ter um aparelho auditivo. Assim, Loid escuta aqueles tão reais passos que se aproximam cada vez mais, chegando finalmente a caverna onde se esconde. As pedras quentes nada são para esse mal, não o queimam, já que este não acredita poder se queimar. Enfim, os olhos de Loid se deparam com o grande mal que tanto ele teme e apesar de não se lembrar, logo reconhece a pequena garota de cabelos dourados e olhos azuis, chamada Alice, que está à sua frente.

Alice olha para Loid e murmura:

- Coelho... 

2. Coelho...


           - Coelho...
            
Um coelho é o que a pequena Alice vê à sua frente. Loid não é um coelho, mas isso pouco importa, já que é um coelho o que Alice quer ver e nada mudará sua opinião, se não ela mesma. Claro que sempre há a possibilidade de Loid ser realmente um coelho e Alice estar certa. Talvez só ela o veja como ele realmente é, enquanto todos os cegos que tentam vê-lo, vêem-no de uma forma errônea. Mas Loid não é um coelho, provavelmente não, ou talvez sim, o é.
            
Loid, mesmo não se lembrando de Alice, já que não a via desdo dia anterior, que foi um infinito atrás, logo perde seu temor inicial, passando a ter na sua presença uma nova sensação de conforto. Uma que é a mais velha de todas as sensações. Tão velha que sua origem há se perdido em tempos imemoriais muito bem lembráveis. A mais velha das sensações que provavelmente acabara de ser criada por Loid naquela mesma manhã, ou talvez na manhã do dia anterior, porém que realmente só seria criada na manhã do dia seguinte. Sensação que talvez seja só uma extensão mais complexa da sua sensação de temor, mas que é igual a essa, só que sentida de uma forma diferente. Assim, rapidamente os olhos de Loid se acostumam com a presença de Alice e mesmo que esses olhos talvez não existam, não deixam de acompanhá-la a partir de então, seguindo todos os movimentos que ela faz.

           Loid se mantêm parado na frente de Alice naquela caverna de pedras quentes. Porém, desde aquele primeiro instante em que ela colocou seus olhos sobre ele - um longo instante que passou rápido demais - quando foi tomado pela nova sensação de conforto, as pedras quentes dessa caverna deixaram de afetá-lo. Talvez tudo por causa dessa nova sensação que o tomou, talvez porque Loid simplesmente esqueceu que podia ser queimado por aquelas pedras, ou ainda talvez porque parou de desejar ser queimando por elas. Na verdade, aos poucos Loid já começa a esquecer que está em uma caverna e só se vê existindo na presença de Alice, com ela o observando.

           Alice mais uma vez lhe fala, dessa vez um pouco invocada:

            - Coelho, nós estamos atrasados. Rápido, rápido...

            Assim, Alice dá um passo à frente e segura a mão de Loid, essa que talvez não exista, mas que pode ser uma pata de coelho. Loid ao ser tocado, perde um pouco da sua concentração sobre a pequena Alice, o que o permite notar que está em uma gigantesca floresta, com altas árvores cercando-o e um infinito verde para todos os lados. Um verde que brilha com a luz de um sol que não pode ser visto e que talvez nem exista. Talvez só sua luz realmente exista. Existindo, sem precisar de um sol, para a única função de iluminar as infinitas folhas das infinitas árvores. Loid talvez ainda esteja na caverna, mas talvez não, talvez nunca houvera realmente uma caverna e ele sempre estivera nessa floresta. Talvez ele tenha desejado estar naquela caverna, quando realmente sempre esteve na floresta, ou talvez ainda esteja na caverna e naquele momento esteja desejando estar na floresta. Na verdade só há a certeza que está com Alice e só isso lhe importa. E, então, Alice segurando aquela mão ou pata de coelho, sai correndo puxando Loid.

           Loid sem opção sai correndo, ou pulando, talvez voando, ao lado dela. Correndo, pulando, ou voando por um caminho cercado de uma continua imensidão verde. Muitas pequenas pedras se encontram por esse caminho, muitas pedras que lhe parecem completamente intransponíveis, mas que são completamente transponíveis enquanto ele é arrastado pela mão de Alice. Assim, continua sendo arrastando por um longo tempo por aquela floresta, até que finalmente Alice avista seu objetivo final, que é claramente um objetivo inicial, encontrado no fim de um início e no início de um fim, onde o meio desse fim e desse início se cruzam. Uma torre de blocos brancos com um relógio em seu topo encontrada no meio de uma pequena clareira de extensão quase eterna circundada infinitamente por umas poucas árvores. Chegando lá, Alice solta Loid, que nesse momento se perde completamente e esquece onde está. Só quando volta a se concentrar, observando Alice, é que pode se orientar melhor sobre sua posição. Porém, seu cambalear ainda evidente, faz com que Alice ria de sua tontura e comece a dançar ao seu redor provocando-o.

            - Coelho tonto, coelho tonto... – diz ela, pulando, correndo ao seu redor.

            Depois, Alice pára e se afastando de Loid, chega mais próxima da torre, colocando seu dedo indicador sobre uma de suas paredes. E, assim, começa a arrastá-lo em linha reta por essa parede, passando logo para uma outra, e mais outra, e mais outra, voltando então ao início e reiniciando tudo. Aos poucos começa a ir mais rápido, repetindo sem parar a sua trajetória circular. Alice precisa correr sem parar para ficar no mesmo lugar, mas ao mesmo tempo não consegue evitar que cresça. Cresce não para cima, nem para os lados, mas para dentro e para fora. E quanto mais cresce, mais bonita fica, porém fica mais exigente, mais complicada e mais indecisa, ou, na verdade, mais incerta sobre o mundo ao seu redor, mais confusa sobre si própria e mais determinada sobre tudo aquilo que não sabe, mas que já lhe há sido explicado por todos aqueles que querem enganá-la. De certa forma, Loid observando-a naquela espiral, vê-se ainda mais preso a ela, precisa dela ainda mais. Porém, com Alice tudo é o oposto, quanto mais gira, mais vê Loid só como um brinquedo, pode querê-lo, mas dele não precisa.

Enfim, após muitas voltas, Alice sai correndo da espiral que havia criado e se joga nos braços de Loid. Alice não se joga nos braços de um coelho, pois não mais vê Loid como um coelho, não mais deseja vê-lo como um coelho. Nesse momento ele é algo diferente, algo que nem Loid e nem um cego podem descrever, algo que só pode ser visto por Alice e só pode realmente ser alguma coisa para ela. Assim, agarrando-o, beija seus lábios. Lábios desconhecidos a todos que não são ela. Lábios que em nada são os de Loid, mas que nele, ela os vê.
   
         Loid tendo os lábios de Alice tocando os seus, acompanhando todos os seus movimentos, deseja realmente senti-los nos seus, mas também naquele momento, Loid para Loid não é Loid e nem Alice para Loid é Alice. Não importando o quanto deseje estar beijando os lábios de Alice, beija, como ela, outros lábios, que também, como ela, só ele pode descrever e conhecer. Essa é a verdade absoluta e nada pode mudá-la. Como o fato que Loid beijando aqueles lábios que não são os de Alice, beija-os com lábios que não são os seus e que nem mesmo ele pode descrever, mesmo que tanto o deseje. Aqueles são os lábios que só existem para beijar os lábios que não são os de Alice, mas que nela se encontram.

           Loid e Alice se beijando, mas ao mesmo tempo não se beijando, continuam a fazê-lo por uma eternidade. Seus lábios, que não são seus lábios, se tocam, suas línguas, que não são suas línguas, brincam, enquanto uma escuridão toma a floresta ao seu redor e uma distante lua cheia vem cobri-los com a sua luz. Diferente da luz do sol que nunca realmente precisara do sol para existir, a luz da lua vem muito bem acompanhada de uma lua, que está lá bem presente e visível sobre os dois, que por sua vez não a notam, já que estão perdidos onde nenhuma lua pode chegar. Porém, mesmo perdidos um no outro, estão ambos perdidos num um que não é realmente o um do outro, assim se encontram ainda frágeis a tudo aquilo que não é realmente o outro.

Logo, de repente, uma badalada do relógio da torre interrompe-os, chega finalmente a vigésima quinta hora, do mesmo modo que antes chegou a décima terceira e a décima oitava, com fortes badaladas que vibram a torre, o chão a baixo desta e por fim a Loid e Alice.

Com seus corpos tremendo com aquela vibração, os dois começam a se separar, seus lábios se afastam, seus corpos começam a se distanciar. Ficam a só se segurarem pelos braços. Mesmo assim, continuam a deslizar em direções opostas até que só se encontram unidos por suas mãos, mas deslizam ainda mais e logo só seus dedos os unem. Então, separando-se completamente, Alice cai, cai para trás, cai sentada dando com as costas em uma das paredes da torre do relógio. Atrás de Alice a parede da torre continua a tremer, seus blocos tremem sem parar. Assim, dos estreitos espaços que dividem os blocos saem pequenas mãos. Milhares de pequenas mãos que com seus pequenos braços se estendem ao redor de Alice. Agressivamente essas milhares de pequenas mãos agarram-na, levantam-na e rapidamente começam a obrigá-la a contornar a torre.

Loid também cai para trás quando os dois se separam, cai para trás batendo com a cabeça em uma pedra. Assim, por alguns instantes fica deitado olhando para cima. Vê-se de novo na caverna quente, olhando para as pedras vermelhas de seu teto. Porém, logo pensando em Alice, lembra que está na floresta e assim pela primeira vez daquele dia, vê a lua cheia que o cobre. Logo deseja observar aquela lua, mas não só, quer fazê-lo com Alice ao seu lado, assim levanta-se para procurá-la e enfim a nota rodeando a torre.

Alice está cansada e desorientada, mas continua sendo empurrada ao redor da torre. Inicialmente, Loid não nota as mãos que a seguram e a forçam a continuar, nem entende o que está acontecendo. Porém, com o tempo, as mãos começam a ir mais rápido, simplesmente jogando Alice de um lado para o outro. Com isso, tudo fica aos poucos mais óbvio para ele. Alice continuando a ser jogada pelos lados da torre, não tem mais nenhuma reação e seus olhos lentamente se esvaziam. Naquele novo rodopiar, ela não mais cresce para dentro e para fora, cresce simplesmente para o nada, o absoluto nada. Loid apesar de começar a entender o que está acontecendo e ver as mãos que dominam Alice, nada faz. Só fica parado observando a situação, continuando a só segui-la com seus olhos. Já que esta é a única coisa que fez até aquele momento por sua própria conta e nada mais sabe fazer. Loid, na verdade, se sente perdido e aos poucos começa a sentir um extremo afastamento de Alice, como se com esse novo rodopiar o exato oposto do que ocorreu da última vez esteja acontecendo, sua necessidade por Alice está sendo rapidamente tragada e aos  poucos ele parece não mais precisar dela. 

Enfim, quando Loid não sente mais nada por Alice, as mãos finalmente a jogam sobre seus braços. Braços que mais uma vez não são os dele, mas que também não são os desejados por ela, são os braços que só existem para segurá-la naquele presente estado. Loid a segura com toda a força que tem e, com o impacto, cai para trás, deitando sobre a grama, sem dessa vez bater com sua cabeça numa pedra, e com Alice deitada sobre seu corpo. Assim, naquele momento, com ela nós braços que não são os seus, Loid finalmente entende, tudo fica-lhe completamente claro. Compreende, então, tudo que poderia ter feito para salvar a pequena Alice daquele horrível rodopiar, o qual ela não podia controlar. Descobre tudo um instante tarde demais. E, nesse instante, sofre. Não por Alice, mas por si próprio, por tudo aquilo que poderia ter sido com ela, por ela e para ela, tudo aquilo que nunca mais poderia ser.

Alice está acabada, deitada sobre Loid, com a cabeça sobre um peito que não é o dele, nem o desejado por ela, mas que está nele para recebê-la. Assim, aos poucos Alice começa a se recobrar. Não para o que havia sido, mas para o que lhe restava ser, seus olhos vazios não se modificam. Então, completamente perdida num um, que nem mais um poderia ser, Alice em devaneio começa a passar sua mão pelo peito que não é o de Loid, nem o desejado por ela, mas que está nele para receber sua mão.

Algumas vezes Alice olha para cima e passa seus olhos vazios pelos olhos de Loid, mas estes não se cruzam com os dele, não mais podem encontrá-los. Loid por sua vez, mesmo não precisando mais dela, ainda deseja rever aqueles olhos azuis que antes o observaram tão profundamente. Não o conseguindo, já que não é mais possível, Loid fica completamente perdido, porém diferente de Alice, perde-se ainda podendo ser um um. E, então, não conseguindo ver aqueles olhos, Loid começa a se lembrar de outros olhos que o permitem ser um um, mas logo rapidamente se esquece e nesse esquecimento se lembra de uma outra linda garota com lindos olhos. Lembra-se de ser observado por ela. Lembra-se de tudo simplesmente porque para poder continuar, precisa, pelo menos, esperar que eventualmente algum par de olhos vivos queira observá-lo de novo. Essa lembrança o faz se sentir bem, mas logo se esquece de tudo e se lembra de Alice.

Alice passando o dedo indicador sobre o peito que não é o de Loid, mas que nele se encontra, continua se recobrando sem em nada modificar o estado de seus olhos. Logo, chegando sua boca perto de uma orelha que não é a dele, mas que nele se encontra para nela poder murmurar, murmura-lhe uma sugestão em uma triste voz:

- Talvez nós devêssemos nos casar e ter filhos.
          
Escutando isso, Loid é tomado por um profundo horror. Não um horror pela sugestão em si, mas um horror por Alice, pelo no quê a haviam transformado. Loid se arrasta por debaixo dela, se afastando lentamente do corpo que de tão pesado, é completamente leve. Até que se vê livre, assim se levanta e sai correndo. Loid pode correr, se afastar de Alice, mas ao mesmo tempo deseja ficar com ela, abraçá-la. Não pode aceitar que alguém que uma vez teve olhos tão vivos possa acabar daquele jeito. Continua, assim, correndo, não mais pela floresta, mas sim pela caverna quente. Entretanto, com Alice correndo atrás dele, toda vez que ele a vê, está de novo na floresta. Ali mais do que tudo, Alice precisa de Loid, mas ele já a há esquecido e só sofre por sua condição, ou, na verdade, só sofre por si próprio, por tê-la perdido quando mais a quis e por não mais a querer quando mais é querido por ela.
  
          Assim correndo em círculos pela floresta, que talvez seja a caverna, mais uma vez Loid se depara com a torre do relógio. Então, tomado de uma profunda fúria, corre até a torre e batendo nela, derruba-a. A torre se espatifa no chão e, com ela, Loid, que fica deitado na grama completamente inconsciente. Ali, por alguns instantes, chega a total consciência de tudo que foi, que é e que será. Tudo fica-lhe completamente claro. Mas, logo voltando a consciência que não é mais inconsciente, esquece de tudo. Abre os olhos e ao seu redor nota mais uma vez aquela manhã iluminada por um sol não visto. Não a de um dia seguinte, mas a mesma exata em que sempre se encontrou. Também descobre Alice deitada em suas costas e vê, então, que o mesmo aconteceu com ela. Assim, os dois se levantam e Loid volta a observá-la. Alice não mais está cansada, seus olhos não mais estão vazios, mas também não mais ela vê Loid como algo que ela poderia beijar e assim para ela, ele volta a ser um coelho. Loid quer ser mais, mas fica satisfeito com o que tem e a imagem da outra linda garota, que talvez só exista para reconfortá-lo, volta a pulsar em sua mente toda vez que se perde da visão de Alice.

            Alice olha para Loid e lhe dá um sorriso. Depois, sai correndo pela floresta, mas sem dessa vez segurar a mão dele. Loid, então, sai correndo atrás dela. Mas estando sozinho, corre demasiadamente devagar, tropeçando em quase todas as pedras que lhe aparecem pelo caminho, acabando, então, por perdê-la completamente de vista. Assim, finalmente num último tropeço, é jogado por fechados arbustos à sua frente e cai de cara no chão. Quando vai se levantar, vê à sua frente uma mesa retangular cercada de cem cadeiras vazias e, no fim desta, sentado na única cadeira ocupada, vê um homem com olhos extremamente secos. Loid não sabe quem é, mas logo reconhece Adolf Hitler.

            Adolf Hitler sentado em sua distante cadeira, olha para Loid e levantando uma xícara de chá, oferecendo-lhe, diz:


- Chá...

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