O Relato da Vida da Terrível Criatura, que vive na Caverna Sombria, chamada Loid é um livro, ou um post em um blog, ou um seguimento de 0s e 1s no holograma da realidade, uma história infinita que se passa em nenhum lugar e em todos, seguindo o dia, ou noite, ou nada, de um ser que é também nenhum, ou todos, ou um homem, ou um réptil, ou um pássaro, ou simplesmente um monstro. Um dia em que caminha por uma caverna sombria, ou uma floresta, ou uma casa antiga, e encontra por seu caminho personagens como Alice, do País das Maravilhas, Adolf Hitler e uma porta.
1. Sangue...
-
Sangue...
Sangue é tudo que vê em suas mãos a
terrível criatura, que vive em uma caverna sombria, e é conhecida pelo povo de
um vilarejo próximo como a “Terrível Criatura que vive na Caverna Sombria”. Mas
que, entretanto, não tem nome, por ser completamente inominável, apesar de, na
verdade, realmente gostar de se auto-intitular “Loid”. E que, assim, será
nomeada neste relato de sua vida, que na sua publicação - se esta já não
ocorreu, ou melhor, se esta algum dia realmente chegar a ocorrer - será - ou é,
ou nunca será - chamado “O Relato da Vida da Terrível Criatura, que vive na
Caverna Sombria, chamada Loid”.
Voltemos então a este tão importante
relato. Então, quem é Loid? Como ele é? Por que é tão temido pelo povo do
vilarejo próximo? Creio que não havia mencionado anteriormente o temor do povo
do vilarejo próximo, mas isso não é importante agora. Essas são perguntas a
serem respondidas em um futuro possivelmente próximo, ou talvez nunca, ou
talvez já foram respondidas e você leitor simplesmente as esqueceu. Mas, o que
é importante agora, é o sangue que se encontra nas mãos de nosso querido Loid.
Por que querido? Você terá essa resposta lendo esse relato, ou talvez não!
Talvez você aprenda a chamá-lo de o terrível Loid. Quem pode realmente dizer
que tipo de julgamento tirará desse fatídico, talvez alegre, talvez tedioso
relato? Certamente, não eu. Provavelmente, nem um pouco você.
Vejo que já
demorei demais a iniciar essa história, então voltemos ao ponto de partida.
Onde está nosso querido Loid? Em sua caverna sombria, a qual não é dono, já que
a Loid nada pertence e nada pode pertencer. Loid vê suas mãos, ou patas, ou
garras, ou ganchos, ou asas, ou nadadeiras, ou simultaneamente todas, ou
constantemente nenhuma, cobertas de sangue, o qual é proveniente de sua pele, a
qual é igual a de um mamífero, ou ave, ou réptil, ou inseto, ou peixe, ou
constantemente todas, ou simultaneamente nenhuma. Loid murmura uma única
palavra na imensidão da caverna sombria e a escuta ser repetida:
- Sangue...
Sangue... Sangue...
Essa é a
principal rotina de Loid todas as manhãs da terra onde não há sol e onde um
inverno constante reina. Uma rotina que não é rotina, pelo menos não para Loid,
que não tem boa memória, ou talvez tenha uma ótima memória, só que não consegue
se lembrar do que fez no passado, que é anterior a seu mergulho no rio de
vidro, o qual dura uma infinidade de tempo.
Loid sente
dor ao ver o sangue, o que é interessante, já que Loid não tem sangue, ou a
capacidade de se machucar. Talvez Loid só goste de pensar que tem sangue e que
pode se machucar. Mas isso é um mistério, já que a mente de Loid é um mistério,
que não pode ser analisado, só seus atos, os quais não tem. Então, também pode
se pensar que Loid não saiba que não tem sangue e que, assim, não pode se
machucar. Talvez alguém haja lhe contado uma mentira, a qual Loid acreditou.
Logo, talvez, suas mãos, face e olhos também sejam uma mentira e possam sim ser
questionadas. Porém, elas sempre existiram, ou talvez não.
Loid não
limpa o sangue, que acaba secando em sua pele, que talvez não exista. Assim,
fica completamente vermelho para todos os cegos que queiram vê-lo, já que sem
vida o vibrante escarlate não mais é. Estando ajoelhado, com pernas, que não
devem ter sua existência questionada, mas que talvez não existam, na margem do
rio de vidro, ele se levanta e caminha para uma das muitas saídas da caverna
sombria. Já que Loid, além de ter pernas, tem a capacidade de andar, ou pelo
menos acredita ter.
A
caverna sombria é bem extensa e leva a muitos lugares, talvez reais, talvez
irreais, talvez só imaginados por Loid. Quem sabe, talvez não vá a lugar
nenhum, talvez a caverna sombria seja realmente pequena e sem saídas. Vamos
supor por enquanto que a única saída real é a que leva ao caminho do vilarejo
próximo, este que talvez só seja imaginado. Supondo isso, vamos acompanhar
Loid, enquanto ele caminha para uma das muitas saídas da caverna sombria que
não é a saída para o vilarejo próximo, já que esta talvez seja a única saída
real, que talvez não exista. Ele contorna o rio de vidro e vê seu caminho
impedido por uma pequena pedra quadrada, talvez retangular, talvez trapezóide,
definitivamente com muitos lados, definitivamente não esférica. Pedra que
antecede um gigantesco penhasco, ou talvez um firme plano rochoso. Loid pára em
dúvida sobre seguir ou não. E, assim decide não seguir. Mas por obra da sorte,
a qual Loid tem pouca e o leitor obviamente muita, já que se não a tivesse a
história acabaria agora, Loid é impelido a seguir por uma estranha e nova
sensação de temor. Segue, dá um passo à frente, ultrapassa aquela pequena pedra
e, então, cai, cai uma imensidão, para o firme plano rochoso a sua frente, um
degrau a cima. Nessa nova, extremamente velha, parte da caverna sombria, ele se
depara com as muitas saídas talvez reais, talvez irreais, talvez imaginadas,
dessa mesma caverna sombria. Todas para muitos, talvez poucos, lugares
distantes, ali perto. Saídas que talvez sejam as estradas de outras saídas
distantes, provavelmente também ali perto.
Loid
sente o temor que o impulsionou a seguir aumentar. Sabe que um grande mal se
aproxima, um que apesar de sempre todas as manhãs o impulsionar para frente,
não pode se lembrar, já que faz tanto tempo que se deparou com ele, num
distante dia atrás, antes do mergulho no rio de vidros. Loid, então, segue por
uma das muitas saídas da caverna sombria, uma logo à sua frente, bem distante, logo
atrás de onde está, uma que apesar de Loid não se lembrar de nada, lhe parece a
mais propícia, levando-o a uma nova caverna. Uma pequena caverna bem quente,
com pedras emanando um constante calor escaldante, que emite uma intensa luz
vermelha, queimando tudo que ali se encontra. Loid é coberto pelo vermelho, que
queima todo o seu corpo, reavivando o sangue seco que o cobre. Ali, tudo ao seu
redor se embaça, as paredes parecem pulsar constantemente, expandindo e
retraindo um eterno vácuo. Loid espera ficar seguro nessa nova caverna contra o
grande mal que continua a se aproximar, obviamente perseguindo-o.
Loid escuta
os passos do grande mal que se aproxima, já que também tem, ou acredita ter, a
capacidade de escutar. Tendo orelhas, ou pelo menos algum tipo de aparelho
auditivo, ou talvez não os tenha e só imagine poder escutar, sem imaginar ter
um aparelho auditivo. Assim, Loid escuta aqueles tão reais passos que se
aproximam cada vez mais, chegando finalmente a caverna onde se esconde. As
pedras quentes nada são para esse mal, não o queimam, já que este não acredita
poder se queimar. Enfim, os olhos de Loid se deparam com o grande mal que tanto
ele teme e apesar de não se lembrar, logo reconhece a pequena garota de cabelos
dourados e olhos azuis, chamada Alice, que está à sua frente.
Alice olha
para Loid e murmura:
- Coelho...
2. Coelho...
Um coelho é o que a pequena Alice vê
à sua frente. Loid não é um coelho, mas isso pouco importa, já que é um coelho
o que Alice quer ver e nada mudará sua opinião, se não ela mesma. Claro que
sempre há a possibilidade de Loid ser realmente um coelho e Alice estar certa.
Talvez só ela o veja como ele realmente é, enquanto todos os cegos que tentam
vê-lo, vêem-no de uma forma errônea. Mas Loid não é um coelho, provavelmente
não, ou talvez sim, o é.
Loid,
mesmo não se lembrando de Alice, já que não a via desdo dia anterior, que foi
um infinito atrás, logo perde seu temor inicial, passando a ter na sua presença
uma nova sensação de conforto. Uma que é a mais velha de todas as sensações.
Tão velha que sua origem há se perdido em tempos imemoriais muito bem
lembráveis. A mais velha das sensações que provavelmente acabara de ser criada
por Loid naquela mesma manhã, ou talvez na manhã do dia anterior, porém que
realmente só seria criada na manhã do dia seguinte. Sensação que talvez seja só
uma extensão mais complexa da sua sensação de temor, mas que é igual a essa, só
que sentida de uma forma diferente. Assim, rapidamente os olhos de Loid se
acostumam com a presença de Alice e mesmo que esses olhos talvez não existam,
não deixam de acompanhá-la a partir de então, seguindo todos os movimentos que
ela faz.
Loid
se mantêm parado na frente de Alice naquela caverna de pedras quentes. Porém,
desde aquele primeiro instante em que ela colocou seus olhos sobre ele - um
longo instante que passou rápido demais - quando foi tomado pela nova sensação
de conforto, as pedras quentes dessa caverna deixaram de afetá-lo. Talvez tudo
por causa dessa nova sensação que o tomou, talvez porque Loid simplesmente
esqueceu que podia ser queimado por aquelas pedras, ou ainda talvez porque
parou de desejar ser queimando por elas. Na verdade, aos poucos Loid já começa
a esquecer que está em uma caverna e só se vê existindo na presença de Alice,
com ela o observando.
Alice
mais uma vez lhe fala, dessa vez um pouco invocada:
-
Coelho, nós estamos atrasados. Rápido, rápido...
Assim,
Alice dá um passo à frente e segura a mão de Loid, essa que talvez não exista, mas
que pode ser uma pata de coelho. Loid ao ser tocado, perde um pouco da sua
concentração sobre a pequena Alice, o que o permite notar que está em uma
gigantesca floresta, com altas árvores cercando-o e um infinito verde para
todos os lados. Um verde que brilha com a luz de um sol que não pode ser visto
e que talvez nem exista. Talvez só sua luz realmente exista. Existindo, sem
precisar de um sol, para a única função de iluminar as infinitas folhas das
infinitas árvores. Loid talvez ainda esteja na caverna, mas talvez não, talvez
nunca houvera realmente uma caverna e ele sempre estivera nessa floresta.
Talvez ele tenha desejado estar naquela caverna, quando realmente sempre esteve
na floresta, ou talvez ainda esteja na caverna e naquele momento esteja desejando
estar na floresta. Na verdade só há a certeza que está com Alice e só isso lhe
importa. E, então, Alice segurando aquela mão ou pata de coelho, sai correndo
puxando Loid.
Loid
sem opção sai correndo, ou pulando, talvez voando, ao lado dela. Correndo,
pulando, ou voando por um caminho cercado de uma continua imensidão verde.
Muitas pequenas pedras se encontram por esse caminho, muitas pedras que lhe
parecem completamente intransponíveis, mas que são completamente transponíveis
enquanto ele é arrastado pela mão de Alice. Assim, continua sendo arrastando
por um longo tempo por aquela floresta, até que finalmente Alice avista seu
objetivo final, que é claramente um objetivo inicial, encontrado no fim de um
início e no início de um fim, onde o meio desse fim e desse início se cruzam.
Uma torre de blocos brancos com um relógio em seu topo encontrada no meio de
uma pequena clareira de extensão quase eterna circundada infinitamente por umas
poucas árvores. Chegando lá, Alice solta Loid, que nesse momento se perde
completamente e esquece onde está. Só quando volta a se concentrar, observando
Alice, é que pode se orientar melhor sobre sua posição. Porém, seu cambalear
ainda evidente, faz com que Alice ria de sua tontura e comece a dançar ao seu
redor provocando-o.
-
Coelho tonto, coelho tonto... – diz ela, pulando, correndo ao seu redor.
Depois,
Alice pára e se afastando de Loid, chega mais próxima da torre, colocando seu
dedo indicador sobre uma de suas paredes. E, assim, começa a arrastá-lo em
linha reta por essa parede, passando logo para uma outra, e mais outra, e mais
outra, voltando então ao início e reiniciando tudo. Aos poucos começa a ir mais
rápido, repetindo sem parar a sua trajetória circular. Alice precisa correr sem
parar para ficar no mesmo lugar, mas ao mesmo tempo não consegue evitar que
cresça. Cresce não para cima, nem para os lados, mas para dentro e para fora. E
quanto mais cresce, mais bonita fica, porém fica mais exigente, mais complicada
e mais indecisa, ou, na verdade, mais incerta sobre o mundo ao seu redor, mais
confusa sobre si própria e mais determinada sobre tudo aquilo que não sabe, mas
que já lhe há sido explicado por todos aqueles que querem enganá-la. De certa
forma, Loid observando-a naquela espiral, vê-se ainda mais preso a ela, precisa
dela ainda mais. Porém, com Alice tudo é o oposto, quanto mais gira, mais vê
Loid só como um brinquedo, pode querê-lo, mas dele não precisa.
Enfim, após
muitas voltas, Alice sai correndo da espiral que havia criado e se joga nos
braços de Loid. Alice não se joga nos braços de um coelho, pois não mais vê
Loid como um coelho, não mais deseja vê-lo como um coelho. Nesse momento ele é
algo diferente, algo que nem Loid e nem um cego podem descrever, algo que só
pode ser visto por Alice e só pode realmente ser alguma coisa para ela. Assim,
agarrando-o, beija seus lábios. Lábios desconhecidos a todos que não são ela.
Lábios que em nada são os de Loid, mas que nele, ela os vê.
Loid
tendo os lábios de Alice tocando os seus, acompanhando todos os seus movimentos,
deseja realmente senti-los nos seus, mas também naquele momento, Loid para Loid
não é Loid e nem Alice para Loid é Alice. Não importando o quanto deseje estar
beijando os lábios de Alice, beija, como ela, outros lábios, que também, como
ela, só ele pode descrever e conhecer. Essa é a verdade absoluta e nada pode
mudá-la. Como o fato que Loid beijando aqueles lábios que não são os de Alice,
beija-os com lábios que não são os seus e que nem mesmo ele pode descrever,
mesmo que tanto o deseje. Aqueles são os lábios que só existem para beijar os
lábios que não são os de Alice, mas que nela se encontram.
Loid
e Alice se beijando, mas ao mesmo tempo não se beijando, continuam a fazê-lo
por uma eternidade. Seus lábios, que não são seus lábios, se tocam, suas línguas,
que não são suas línguas, brincam, enquanto uma escuridão toma a floresta ao
seu redor e uma distante lua cheia vem cobri-los com a sua luz. Diferente da
luz do sol que nunca realmente precisara do sol para existir, a luz da lua vem
muito bem acompanhada de uma lua, que está lá bem presente e visível sobre os
dois, que por sua vez não a notam, já que estão perdidos onde nenhuma lua pode
chegar. Porém, mesmo perdidos um no outro, estão ambos perdidos num um que não
é realmente o um do outro, assim se encontram ainda frágeis a tudo aquilo que
não é realmente o outro.
Logo, de
repente, uma badalada do relógio da torre interrompe-os, chega finalmente a
vigésima quinta hora, do mesmo modo que antes chegou a décima terceira e a
décima oitava, com fortes badaladas que vibram a torre, o chão a baixo desta e
por fim a Loid e Alice.
Com seus
corpos tremendo com aquela vibração, os dois começam a se separar, seus lábios
se afastam, seus corpos começam a se distanciar. Ficam a só se segurarem pelos
braços. Mesmo assim, continuam a deslizar em direções opostas até que só se
encontram unidos por suas mãos, mas deslizam ainda mais e logo só seus dedos os
unem. Então, separando-se completamente, Alice cai, cai para trás, cai sentada
dando com as costas em uma das paredes da torre do relógio. Atrás de Alice a
parede da torre continua a tremer, seus blocos tremem sem parar. Assim, dos
estreitos espaços que dividem os blocos saem pequenas mãos. Milhares de
pequenas mãos que com seus pequenos braços se estendem ao redor de Alice.
Agressivamente essas milhares de pequenas mãos agarram-na, levantam-na e
rapidamente começam a obrigá-la a contornar a torre.
Loid também
cai para trás quando os dois se separam, cai para trás batendo com a cabeça em
uma pedra. Assim, por alguns instantes fica deitado olhando para cima. Vê-se de
novo na caverna quente, olhando para as pedras vermelhas de seu teto. Porém,
logo pensando em Alice, lembra que está na floresta e assim pela primeira vez
daquele dia, vê a lua cheia que o cobre. Logo deseja observar aquela lua, mas
não só, quer fazê-lo com Alice ao seu lado, assim levanta-se para procurá-la e
enfim a nota rodeando a torre.
Alice está
cansada e desorientada, mas continua sendo empurrada ao redor da torre.
Inicialmente, Loid não nota as mãos que a seguram e a forçam a continuar, nem
entende o que está acontecendo. Porém, com o tempo, as mãos começam a ir mais
rápido, simplesmente jogando Alice de um lado para o outro. Com isso, tudo fica
aos poucos mais óbvio para ele. Alice continuando a ser jogada pelos lados da
torre, não tem mais nenhuma reação e seus olhos lentamente se esvaziam. Naquele
novo rodopiar, ela não mais cresce para dentro e para fora, cresce simplesmente
para o nada, o absoluto nada. Loid apesar de começar a entender o que está
acontecendo e ver as mãos que dominam Alice, nada faz. Só fica parado
observando a situação, continuando a só segui-la com seus olhos. Já que esta é
a única coisa que fez até aquele momento por sua própria conta e nada mais sabe
fazer. Loid, na verdade, se sente perdido e aos poucos começa a sentir um
extremo afastamento de Alice, como se com esse novo rodopiar o exato oposto do
que ocorreu da última vez esteja acontecendo, sua necessidade por Alice está
sendo rapidamente tragada e aos poucos
ele parece não mais precisar dela.
Enfim,
quando Loid não sente mais nada por Alice, as mãos finalmente a jogam sobre
seus braços. Braços que mais uma vez não são os dele, mas que também não são os
desejados por ela, são os braços que só existem para segurá-la naquele presente
estado. Loid a segura com toda a força que tem e, com o impacto, cai para trás,
deitando sobre a grama, sem dessa vez bater com sua cabeça numa pedra, e com
Alice deitada sobre seu corpo. Assim, naquele momento, com ela nós braços que
não são os seus, Loid finalmente entende, tudo fica-lhe completamente claro.
Compreende, então, tudo que poderia ter feito para salvar a pequena Alice
daquele horrível rodopiar, o qual ela não podia controlar. Descobre tudo um
instante tarde demais. E, nesse instante, sofre. Não por Alice, mas por si
próprio, por tudo aquilo que poderia ter sido com ela, por ela e para ela, tudo
aquilo que nunca mais poderia ser.
Alice está
acabada, deitada sobre Loid, com a cabeça sobre um peito que não é o dele, nem
o desejado por ela, mas que está nele para recebê-la. Assim, aos poucos Alice
começa a se recobrar. Não para o que havia sido, mas para o que lhe restava
ser, seus olhos vazios não se modificam. Então, completamente perdida num um,
que nem mais um poderia ser, Alice em devaneio começa a passar sua mão pelo
peito que não é o de Loid, nem o desejado por ela, mas que está nele para
receber sua mão.
Algumas
vezes Alice olha para cima e passa seus olhos vazios pelos olhos de Loid, mas
estes não se cruzam com os dele, não mais podem encontrá-los. Loid por sua vez,
mesmo não precisando mais dela, ainda deseja rever aqueles olhos azuis que
antes o observaram tão profundamente. Não o conseguindo, já que não é mais
possível, Loid fica completamente perdido, porém diferente de Alice, perde-se
ainda podendo ser um um. E, então, não conseguindo ver aqueles olhos, Loid
começa a se lembrar de outros olhos que o permitem ser um um, mas logo
rapidamente se esquece e nesse esquecimento se lembra de uma outra linda garota
com lindos olhos. Lembra-se de ser observado por ela. Lembra-se de tudo
simplesmente porque para poder continuar, precisa, pelo menos, esperar que
eventualmente algum par de olhos vivos queira observá-lo de novo. Essa
lembrança o faz se sentir bem, mas logo se esquece de tudo e se lembra de
Alice.
Alice
passando o dedo indicador sobre o peito que não é o de Loid, mas que nele se
encontra, continua se recobrando sem em nada modificar o estado de seus olhos.
Logo, chegando sua boca perto de uma orelha que não é a dele, mas que nele se
encontra para nela poder murmurar, murmura-lhe uma sugestão em uma triste voz:
- Talvez
nós devêssemos nos casar e ter filhos.
Escutando
isso, Loid é tomado por um profundo horror. Não um horror pela sugestão em si,
mas um horror por Alice, pelo no quê a haviam transformado. Loid se arrasta por
debaixo dela, se afastando lentamente do corpo que de tão pesado, é
completamente leve. Até que se vê livre, assim se levanta e sai correndo. Loid
pode correr, se afastar de Alice, mas ao mesmo tempo deseja ficar com ela,
abraçá-la. Não pode aceitar que alguém que uma vez teve olhos tão vivos possa
acabar daquele jeito. Continua, assim, correndo, não mais pela floresta, mas
sim pela caverna quente. Entretanto, com Alice correndo atrás dele, toda vez que
ele a vê, está de novo na floresta. Ali mais do que tudo, Alice precisa de
Loid, mas ele já a há esquecido e só sofre por sua condição, ou, na verdade, só
sofre por si próprio, por tê-la perdido quando mais a quis e por não mais a
querer quando mais é querido por ela.
Assim
correndo em círculos pela floresta, que talvez seja a caverna, mais uma vez
Loid se depara com a torre do relógio. Então, tomado de uma profunda fúria,
corre até a torre e batendo nela, derruba-a. A torre se espatifa no chão e, com
ela, Loid, que fica deitado na grama completamente inconsciente. Ali, por
alguns instantes, chega a total consciência de tudo que foi, que é e que será.
Tudo fica-lhe completamente claro. Mas, logo voltando a consciência que não é
mais inconsciente, esquece de tudo. Abre os olhos e ao seu redor nota mais uma
vez aquela manhã iluminada por um sol não visto. Não a de um dia seguinte, mas
a mesma exata em que sempre se encontrou. Também descobre Alice deitada em suas
costas e vê, então, que o mesmo aconteceu com ela. Assim, os dois se levantam e
Loid volta a observá-la. Alice não mais está cansada, seus olhos não mais estão
vazios, mas também não mais ela vê Loid como algo que ela poderia beijar e
assim para ela, ele volta a ser um coelho. Loid quer ser mais, mas fica
satisfeito com o que tem e a imagem da outra linda garota, que talvez só exista
para reconfortá-lo, volta a pulsar em sua mente toda vez que se perde da visão
de Alice.
Alice
olha para Loid e lhe dá um sorriso. Depois, sai correndo pela floresta, mas sem
dessa vez segurar a mão dele. Loid, então, sai correndo atrás dela. Mas estando
sozinho, corre demasiadamente devagar, tropeçando em quase todas as pedras que
lhe aparecem pelo caminho, acabando, então, por perdê-la completamente de
vista. Assim, finalmente num último tropeço, é jogado por fechados arbustos à
sua frente e cai de cara no chão. Quando vai se levantar, vê à sua frente uma
mesa retangular cercada de cem cadeiras vazias e, no fim desta, sentado na
única cadeira ocupada, vê um homem com olhos extremamente secos. Loid não sabe
quem é, mas logo reconhece Adolf Hitler.
Adolf
Hitler sentado em sua distante cadeira, olha para Loid e levantando uma xícara
de chá, oferecendo-lhe, diz:
- Chá...
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