Memórias do Transmundo: Ayahuasca 1ª Experiência


Ayahuasca é um chá produzido a partir da combinação de duas plantas medicinais: cipó de jagube e folhas de chacrona. Geralmente encontradas na floresta amazônica, e sendo usadas nessa combinação há milhares de anos por xamãs da região. O chá geralmente é bebido em rituais religiosos que buscam uma expansão da percepção dos indivíduos, criando um maior contato destes com seu subconsciente, ou talvez com o chamado inconsciente coletivo junguiano, se não com a própria natureza em suas muitas camadas, depende muito da interpretação de cada um. Não é uma bebida recreativa, nem alucinógena, as visões que um usuário pode ter, são todas em sua mente, com seus olhos fechados. Em muito, proporciona um atalho rápido para um alto estado de meditação e auto-conhecimento.

Minha primeira experiência com a bebida foi em uma igreja que se autodenomina de todas as religiões: budista, cristã, muçulmana, judaica, egípcia, umbandista, xamânica. Não me veria participando desse ritual em nenhum outro lugar, primeiro porque com exceção do ramo xamã com a sua ligação com a natureza, nenhum simbolismo das outras religiões me diria alguma coisa. Não que isso fosse necessário em si para ao ritual, mas muitas pessoas depositam suas emoções nessas imagens exteriores, nessas entidades criadas e logo podem usá-las para chegar a onde quererem. Não meu caso. Segundo, porque a maioria das igrejas, pelo menos no Rio de Janeiro, que praticam esse ritual, são de alto foco cristão, o que só de imaginar, já me causa tremendo horror. Dito isso, vamos começar nossa narrativa.  


Comecemos algumas horas antes, para dar sentido a certos estados sonolentos. 17h estava no CCBB vendo um filme chato. Pensei, ok, vou dormir no filme e depois saio para lá. Acomodei-me todo na cadeira, estiquei as pernas e comecei a dormir. Passados uns 30 minutos, vem no meio da sessão duas mulheres gordas, que sentam nas duas cadeiras a minha frente, arriação as poltronas para trás esmagando minhas pernas. Acordo, tento me acomodar de outra forma. Mas, meu deus, o perfume, o perfume, insuportável. Desisto, levando e vou embora. Enrolo um pouco no CCBB, mas sem nada o que fazer, e sem muitas esperanças para a próxima sessão ser boa, decido que posso andar até o lugar do ritual. Tenho pernas, duas horas não são nada. Ando, ando, ando, janto clube sociais, descubro que parte do caminho é subindo uma montanha (ah google maps como sempre me engana!), subo, subo, subo, e sob as batidas do martelo de Thor no céu, chego no lugar. Engraçado que de todas as representações religiosas no lugar, as outras duas as quais poderia me relacionar, não estão lá, nenhum grego, nenhum nórdico. Por isso que Thor está irritado! Mas em suma, apesar de na hora chegar bem e acordado, a maioria das minhas energias para o ritual foram gastas na minha longa caminhada. Fora o fato que já há algum tempo 4 horas de sono à noite tem me bastado.

Chego, me socializo minimamente, e sento esperando o início da cerimônia. Cheguei cedo demais, logo tenho de esperar um bom tempo. Mas depois de uma hora, o lugar está cheio. Começa o evento, primeiro com o organizador explicando o que podemos esperar da experiência.  Explica a parte de não ser uma planta recreativa, de não causar alucinações, de tudo se passar realmente num estado de meditação dentro de nossas cabeças, de ter um poder de cura, trazendo a tona sentimentos com que tenhamos que lidar, de abrir caminho para novos estados de consciência e também para a comunicação com as entidades que vivem nesses estados. Avisa que algumas pessoas possam passar por um mal estar, mas que isso também é parte do processo de limpeza da sua mente. Durante essa explicação, começo a sentir os primeiros sinais do problema que me assolará à noite toda, não consigo ficar sentado no chão. Todos estão sentados no chão, mas minhas pernas não tem esse costume, tenho de mudar a cada segundo de posição, senão começa uma dor interminável.

Inicia-se a cerimônia, os organizadores começam um ritual com preces e batidas para limpar o ambiente. Fico sentado no chão, na melhor posição que consigo me estabelecer, de olhos fechados. Esse início dura cerca de uns 20, 30 minutos, durmo sentado.  Acabadas as preces, vamos tomar o ayahuasca, como é minha primeira vez, recebo metade de um copo, e volto para o meu lugar. Começa uma fase de meditação na cerimônia, com silêncio absoluto algumas horas e batidas e sons ritualísticos em outras. Tento meditar, limpar minha mente, só me focar na minha respiração. As imagens começam a vir, meus sentidos começam a se aglutinar. No começo não posso definir muita coisa, mais cores me aparecem, pingos fosforescentes, depois figuras geométricas também brilhantes. Entro totalmente para dentro de mim, só essas imagens são minha existência. Algumas vezes, por segundos, vejo lugares, porém, a dor nas pernas, na posição que estou sentado me puxam de volta, e assim que abro os olhos, tudo se desaglutina e as imagens se vão. Sinto que para me aprofundar nesses cenários que vejo, preciso me concentrar melhor, mas minhas pernas me impedem. Vejo nesse primeiro momento dois cenários marcantes: um templo todo azul de colunas, com passagens que levam para um campo com árvores cheias de flores rosas e brancas; e em outro momento vejo uma sala de blocos vermelhos fortes, com corredores que se seguem por lugares que não posso ver, com um pequeno riacho a cruzando. Esses dois cenários são importantes, pois logo se repetirão. Quanto mais sinto incomodo com a forma que estou sentado, mais o efeito vai passando, mais difícil sentir a aglutinação dos meus sentidos, mais difícil ir para dentro. 

Antes de continuar tenho que confessar que não sou estranho a nada disso, nunca tomei nada antes disso para chegar em cenários assim, a aglutinações assim, cheguei por outros meios. Durante muitos anos pratiquei um tipo de meditação próprio meu, geralmente deitado, geralmente com a ajuda de Sigur Rós, Múm, e algumas outras bandas, que me permitiram a conscientemente acessar lugares que não tenho certeza se posso considerar como sonhos lúcidos ou não, e às vezes até a conversar (trocar rápidas palavras, na verdade) com seres, quem sabe reais entidades fora de mim, quem sabe partes de mim. Para citar uma citação de Blade Runner que não consegui achar: já estive dentro de estrelas. Prática que parei em parte por problemas não referentes a isso, em parte porque quanto mais me aprofundava por essas possibilidades, maior era o desconforto quando era puxado de volta por barulhos, como cães, carros e gritos de pessoas no ambiente que tinha para essa prática. Hoje em dia, sem o costume, se tento repetir isso, caio mais para uma estática mental.


Voltando, então, a cerimônia. Acabado o efeito do primeiro gole, acabada a hora da meditação, fomos tomar o segundo gole. Dessa vez pedi um copo cheio. Determinado agora a não deixar a perna me incomodar de me concentrar e de entrar por completo para dentro de mim. Voltamos a meditação, porém, essa foi por pouco tempo. A luz foi acessa e o ritual passou para uma fase de música e dança. Não entro nela, estou determinado, quero fazer o que não consegui no primeiro gole, quero entrar totalmente para dentro de mim. Ao redor da roda de dança, encontro uma cadeira, finalmente uma cadeira, e sento. Tento me focar ao máximo em não me mover, em limpar meus pensamentos, apesar de a música e a luz ao meu redor não estarem ajudando nessa hora. Encontro-me numa montanha russa de estados, algumas horas consigo voltar àquela interiorização, mais uma vez revejo aquele templo azul que vi antes e também a sala vermelha, somados a isso também uma outra sala de blocos de ouro, com artefatos também dourados cobertos de vegetação, e um corredor prateado. Por alguma razão esses ambientes me parecem ser as portas para algo. Não me mantenho muito tempo neles, sou puxado para fora. Tento voltar, mas agora, a minha aglutinação de sentidos começa a tomar novas formas. Por segundos minha boca some, junta-se com meus olhos. Digo isso, interiormente, e de certa forma por escolha, porque todos esses sentidos somem assim que abro os olhos, mas quero passar por eles, porque quero chegar do outro lado. Mas não consigo, meus sentidos começam a virar figuras geométricas dentro de mim, não saindo disso. Um zumbido forte, como num filme de Bergman, me toma interiormente, fico enjoado. Tento vomitar no banheiro, mas não tenho nada dentro de mim para vomitar. Nesse ritual vomitar é normal, se espera que as pessoas coloquem coisas para fora num certo momento. Tento dançar com a multidão, mas isso não me leva a nenhum lugar. Volto a sentar e começo a só me sentir, sentir meus sentidos. Descubro que de olhos fechados, ao passar minha mão contra a minha pele, de forma firme e constante, produzo um mundo dourado brilhante dentro de mim. Quanto mais passo a mão por meu rosto, por meus braços, mais brilho vejo. Sinto, então, que posso seguir qualquer caminho que quiser com meus sentimentos. Posso pensar em coisas ruins, e senti-las ao máximo, ou posso pensar em coisas boas, e fazer o mesmo. Decido que quero sentir toda a felicidade do mundo, quero sentir o amor, penso em alguém que me causa esse sentimento. Levanto.

Devo dizer que provavelmente nessa hora do ritual, desse estado do ayahuasca, como o organizador apontou no início, outras pessoas estariam resolvendo seus conflitos interiores, porque é nessa hora que me pergunto sobre isso. Porém, minhas últimas três semanas antes desse ritual, já foram o meu ritual de resolução de conflitos interiores, em que por outra ruptura epistemológica, fui levado a consertar partes em mim há muito negligenciadas, sair de um não ser quem sou, para meu verdadeiro ser. Logo, quando levanto, levanto para sentir isso, para me sentir como realmente sou, para sentir meus melhores sentimentos. Saio da sala em que está acontecendo a dança, vou para um jardim, onde outros passam por seus próprios processos sozinhos. Bebo água, muita água, respiro fundo, o oxigênio se torna o alimento mais nutritivo da minha existência. O chão está molhado, sinto a água do chão, sinto a música lá dentro, fecho os olhos, não vou voltar àquela interiorização de antes, nem é mais possível nesse estado, fecho os olhos para sentir o que está transbordando de dentro de mim para fora, todo aquele sentimento de felicidade pelo que conclui nas últimas semanas, todo o amor que vem pela pessoa que vem a minha cabeça, ou quem sabe todo o amor que descobri dentro de mim, e ao qual só uso a imagem dessa pessoa como referencia. Sorrio, rio, meu corpo dança com tudo que transborda de mim, e que às vezes também sinto ser retribuído pelo fora, como uma troca, vindo do ar, das plantas, da noite, das pessoas. À vezes volto a tocar minha pele com intensidade, e mais uma vez tudo brilha dentro de mim. Engraçado, que do mesmo jeito de antes, ao abrir os olhos, tudo se desfaz. Acredito ficar uma hora ou mais num estado eufórico, rindo, sorrindo sem parar, pulando, querendo sentir as coisas, sentir o ar, sentir o oxigênio, sentir o meu corpo, sentir o chão em que piso. Sinto um grande prazer ao qual não consigo expressar em palavras. Sei disso, porque tento na hora verbalizá-lo e não acho descrições plausíveis. Alguma hora alguém me abana, me oferece água, mas estou bem, muito bem, não preciso de nada disso. Sinto que nem devo mais ter nenhuma substância no meu organismo, só estou feliz, desfrutando de todos os sentimentos que me descobri tendo nas últimas semanas. Penso na pessoa que me causa isso, vejo sua imagem, e me encontro outra vez rindo sem parar de felicidade. Apesar de em si isso não ter nada haver com a pessoa, isso é meu, algo totalmente meu, que me descobri tendo e não posso mais deixar de ter. Ela é só onde estou focando essa força agora, mas não é sua causadora, eu sou.

A dança acaba lá dentro, todos voltam para dentro para debater sobre algum assunto. Vou também, sento na frente de um altar cheio de imagens de deuses diferentes. Não escuto o que falam, olho os deuses, me parecem action figures engraçados. Num momento, uma garota acende uma vela para colocar no altar. Ela tem dificuldade em manter a vela parada no lugar, trabalha um bom tempo para conseguir. Observo toda sua ação como o maior ato de beleza da noite. Todas aquelas estatuas não me dizem absolutamente nada, mas o esforço daquela garota colocando aquela vela, me diz tudo, o ser humano com seus desejos e seus conflitos, com sua persistência, aí está a verdade de tudo, toda a beleza. Termina o debate, termina a cerimônia, as pessoas se socializam, comem pizza. Falo com uma pessoa ou outra, mas não me integro na multidão, estou pensando ainda em contar tudo aquilo para pessoa que usei como referência para extravasar meu amor. Acaba assim essa minha primeira experiência, a segunda terá minhas pernas em melhores condições de sentar.

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