Caché de Michael Haneke

ou George e Majid: Uma Relação do Século XX


Caché
é um filme do diretor Michael Haneke. Um suspense, mas não necessariamente um suspense. Pois, não é o mistério que move a história, mas a reação dos personagens a ele. Uma narração, mas não necessariamente uma narração. Pois, não é a história que move o filme, mas a câmara que tanto segue os personagens na sua narrativa, tanto se abstém e assume outras perspectivas, abandonando-os a distância, libertando o significado. Uma crítica social, mas não necessariamente uma crítica social. Pois, não são as interações entre os personagens que movem a câmara, mas uma manipulação com o espectador que se sustenta sobre os próprios preconceitos deste. Caché significa escondido e seu significado pode estar muito bem escondido. Ou não, talvez só a percepção de seus espectadores seja a que esteja escondida. Ou quem sabe, talvez sejam os próprios espectadores quem estão escondidos e nem disto saibam.


Na superfície é a história de George (Daniel Auteuil), e Anne (Juliette Binoche) sua esposa que pouco importa a trama, que passa a receber fitas de vídeo anônimas com imagens de sua casa. Eventualmente, uma das fitas o leva a confrontar a culpa do que fez em seu passado, quando durante a infância, por desgosto, impediu seus pais de adotarem o filho de caseiros algerianos, mortos pela polícia na demonstração de 1961 na França. Um garoto, Majid (Maurice Bénichou), que acabou sendo mandado para um orfanato e seguiu a vida como um cidadão de segunda classe na sociedade francesa. Então, George é obrigado a confrontá-lo, mas não por sua culpa e sim por acreditar que ele esteja mandando as fitas e deseje vingança. Majid confrontado, vendo-se mais uma vez perseguido, mais uma vez acusado sem motivo algum, como em sua infância, como provavelmente por toda a sua vida, se mata, talvez por cansaço, talvez para provar um idéia, a de que nem com sua morte, George pode se satisfazer. Majid morto. George inalterado. Resta o filho de Majid (Walid Afkir) para apontar o dedo acusatório para a culpa de George. Resta o mistério de quem está mandando as fitas. Resta a ligação entre o filho de George e o filho de Majid. Resta o que pode estar escondido, ou a vista de todos.

Mas quem são os personagens? George e Anne são um casal supostamente intelectual. Com George sendo apresentador de um show de tv literário e Anne sendo uma editora de livros. Vivem uma vida supostamente cotidiana, trabalhando, tendo jantares com amigos, tendo um filho. George se esconde de Anne, tem dificuldade em revelar seus tormentos. Anne, ao contrário, tem extrema facilidade em revelar tudo para os amigos, mas também tem algo escondido, pois talvez um desses amigos seja seu amante. Majid é atormentado, é conformado com a perseguição a ele infligida, é o sofredor, e, apesar de não parecer ter nada a esconder, mais nada dele se sabe. Seu filho é o oposto, tem raiva, não pode mais aceitar a perseguição, quer respostas daqueles que dizem saber mais e se calam, e parece saber algo sobre o mistério, mas esconde e nega. Ainda se apresentam no cenário, o filho de George, que mais se revela como parte do mistério, que como um personagem, e a mãe de George, que na sua rápida aparição, ao ser perguntada pelo filho sobre Majid, se esquiva suspeitamente do assunto, mais uma que esconde. Mas o que disso importa? Tudo depende da percepção do espectador que está sendo manipulada. Talvez tudo isso seja realmente só o que está escondido no filme. Mas talvez o mistério seja mais profundo.

Quem é quem? Por que são? Como são? Vamos mais a fundo. Infância. Anos 60. George é francês. Majid é argeliano. Ou não! George é a criança que por desgosto do diferente não quer Majid na sua vida, que manipula-o a cometer a barbárie, prometendo com isso maior aceitação de seus pais. Majid faz o que lhe manda e se vê traído, a barbárie não era o esperado. Ele é expulso, renegado. A mãe se esquiva quando questionada no presente sobre o filho não adotado. A França promete liberdade, igualdade e fraternidade. A Argélia não é Argélia, a Argélia é França. Não há argelinos, há franceses. Franceses que esperam liberdade, igualdade e fraternidade, mas que acabam sendo excluídos por outros francês, que os olham com desgosto, segregando-os ao mais baixo, a barbárie. Os franceses se revoltam, não agüentam mais a exclusão, se tornam argelinos. A França não pode aceitar argelinos, só franceses e os argelinos nunca poderão ser franceses, enquanto os franceses não os permitirem. A França se esquiva quando questionada no presente sobre o filho não adotado.

40 anos se passam, câmaras são jogadas sobre George, trazendo à tona uma culpa pelo destino de Majid, uma culpa indiferente que não quer se revelar, que grita por vingança pelo que fez. George confronta Majid e implora por vingança. Majid em silêncio implora por um por quê. George não lhe oferece respostas, na sua culpa indiferente, só se interessa por suas próprias questões. Não é Majid que importa, é Majid em relação a George, sob a ideologia supostamente intelectual de George, sob seu certo e errado. Majid senta na cadeira de seu pequeno apartamento e chora, perguntando a si mesmo, sozinho, por que lhe é renegada a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Majid chama George a seu apartamento e em sua frente, corta a própria garganta. George volta para sua casa de luxo, ao seu quarto com grossas cortinas de seda e se deita na cama.

Não restando mais Majid, se apresenta o filho de Majid. Ele que não é nem francês, nem argelino, que é, como todos os filhos de Majid, americano. E sendo americano, vai diretamente se confrontar com George. E à sua frente, em pé, grita, exige, um por quê. George o evita, o renega, corre, se esconde.

À distância, um carro chega à uma velha casa, que pode ser a casa da infância de George. George está com sua família. Eles saem do carro em direção a casa, mas seu filho chora, luta, não quer entrar. Teria a dona da casa morrido? Teria a mãe de George morrido? Talvez sim, talvez não. Mas se morreu, anuncia-se o fim de George, não nascerão mais Georges. O filho de George que grita e chora e luta, também não é francês. É, como todos os filhos de George, americano.
No fim, os dois americanos, os filhos de Majid e George, se encontram e conversam, talvez sobre os franceses e argelinos que logo se extinguirão, talvez sobre outras coisas. E essa é mais uma percepção, mais um escondido.

Acabando, uma última percepção. No meio do filme, há algo tão explicito que pode estar muito bem escondido. Pois, quando a câmara se atem numa tv no fundo de uma cena, não são notícias sobre a França com seus jovens árabes que se apresentam, são notícias da guerra do Iraque, dos americanos. Não é só a França que morre. Não é só a Argélia que ao ser separada da mãe adotiva se afunda na barbárie, incentivada pelos seus irmãos, os francês, que irmãos não querem ser. São todas as outras Franças e todas as outras Argélias que o fazem. São todos os imperialistas e os colonizados, ambos que são lentamente substituídos no presente pelos americanos. Curiosamente, ao mesmo tempo que estes, os americanos, ainda querem se ater a divisão de imperialistas e colonizados. Só aos americanos falta serem americanos. Ou não! Talvez tudo esteja realmente escondido.

Um comentário:

Marco Antônio de Araújo Bueno disse...

Daniel,grato pela melhor leitura de "Caché" que tive, hoje o prazer de ler. Lerei a do Kafka. Coordeno um blogue coletivo - www.e-chaleira.blogspot.com Tive um desecontro, hoje, com meu colunista de cinema.Coisa pequena. Em todo caso, se goutar do blogue, escreva-ma.
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